A hora de falar aos corações distraídos

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Opinião

A hora de falar aos corações distraídos

O defeito não está em quem está ouvindo, o defeito é do semeador que muitas vezes escolhe falar aos ouvidos, e não aos corações


27 de agosto de 2019 - 15h00

(Crédito: Rawpixel/ iStock)

O que nos unifica? O que nos permite criar pautas coletivas maiores do que nossas diferenças? Tenho me encontrado com frequência com essa pergunta.

Há alguns meses, no Fronteira do Pensamento, Graça Machel nos convidou a perceber e entender o motivo pelo qual ser mulher a tornava única, assim como ser negra e africana. Em seguida, Graça nos pediu para esquecer o que ela tinha acabado de nos fazer ver e buscar encontrar o que nos unificava, aquilo que nos tornava humanos.

Na última semana, ouvi a mesma indagação na voz de Sérgio Leitão, ex-diretor de políticas públicas e campanhas do Greenpeace e fundador do Instituto Escolhas, seguida da afirmação de que somos uma sociedade que teme perguntas. É verdade, temos medo das perguntas sem perceber que, na ausência delas, não dialogamos nem temos a chance de convergir.

Criado em 2015, o Instituto Escolhas é uma associação civil pensada para qualificar o debate sobre sustentabilidade por meio da análise numérica dos impactos econômicos, sociais e ambientais das decisões públicas e privadas. Um lugar criado para ajudar as pessoas a fazerem perguntas a partir da observação da realidade, superando a “polarização ideológica das escolhas e viabilizando o desenvolvimento sustentável”.

Mesmo necessárias, neste momento, não são as perguntas que têm nos movido como sociedade. São os conflitos. Mas enquanto os conflitos nos movem, o que nos agrega?

Voltando a Sérgio Leitão, em uma explícita referência a Mark Lilla, cientista político e professor de humanidades na Universidade Columbia, durante nosso encontro na última semana: “Como eu me reconheço em um projeto de país em um momento de disputas de pautas identitárias onde minha pauta parece sempre mais importante que a sua?” E continua: “Vivemos tempos de disputa interna onde eu quero que a minha causa, a minha questão identitária possa encabeçar a pauta de reivindicação. É como se passássemos a ter uma discussão sobre a minha questão ser mais relevante do que a sua se contrapondo ao fato de que quem quer contestar isso faz exatamente isso.”

Durante as últimas semanas, mais de uma vez presenciei situações polarizadas daquele tipo em que ter razão parece ser a única coisa que importa. Embates sem diálogo encerrados por decisões totalitárias que estão acontecendo em todos os lugares, em todos os níveis, independentemente de faixa etária, renda ou tendência ideológica.

Na visão do fundador do Instituto Escolhas: “Nesse momento, é a afronta que nos anima, que movimenta o debate porque nos reanima. Eu posso dizer algo que seja totalmente afrontoso para você, mas que vai agradar quem está ao seu lado, então eu sei que estou dividindo, mas minha escolha é dividir, embora eu faça isso como todo mundo faz, supostamente dizendo que me apresento como um projeto universalizante.” É nessa hora que nos perguntamos: como a gente faz? Temos usado com frequência expressões como sonho, emoções, crenças, pessoas, causas. Sonhos cada um tem o seu. Emoções podem separar. Crenças podem matar se eu não souber reconhecer que a sua é tão legítima quanto a minha. Pessoas podem se odiar. Causas são conflitivas.

O desafio que temos hoje, tratado no livro de Mark Lilla, que afirma que as causas identitárias não fazem um projeto de país, é como nos conectamos, como unimos as pessoas independentemente de suas diferentes emoções, causas, crenças pessoais. “Quando olhamos em volta e tudo o que parece existir são elementos desagregadores, nos organizamos cada vez mais em campos não necessariamente abertos ao compartilhamento, mesmo quando nos colocamos como representantes de lutas pela equidade e inclusão. Divididos em tribos, temos repetidamente falado para nossos iguais.”

Meu encontro com Sérgio se encerrou como vou encerrar este artigo, em referência a Padre Antônio Vieira no Sermão da Sexagésima, 1655: “Como falar aos corações distraídos? Para os corações que são pedra (aqueles que não querem ouvir) e para os ouvidos que são espinho (aqueles que de tudo discordam)? O defeito não está em quem está ouvindo, o defeito é do semeador que muitas vezes escolhe falar aos ouvidos, e não aos corações. Aos corações falamos com nossas ações, não com as palavras. Nós nos acostumamos a vender uma totalidade pessoal, que nada mais é do que nossa visão de mundo, algo que só pode parecer real a partir do momento em que usamos a força para fazer desaparecer tudo o que é diferente do que consideramos representar nossa ideia particular do que é correto, adequado, aceito”.

Cada um de nós carrega uma verdade que pode se transformar em opressão diante da ausência da mesma verdade no outro. Uma conclusão tão insólita quanto real e tão real que não é mais possível seguir em frente evitando nos perguntar o que ela significa.

*Crédito da foto no topo: Boris Rabtsevich/iStock

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