A mulher e o tempo que ninguém vê
Sociedade não equaciona binômio vida privada + vida pública e delega essa tarefa ao sexo feminino, que tenta resolvê-lo em esforço físico e emocional
Sociedade não equaciona binômio vida privada + vida pública e delega essa tarefa ao sexo feminino, que tenta resolvê-lo em esforço físico e emocional
Ao longo da história, em grande parte das civilizações, às mulheres foi imputado o papel “natural” de cuidadoras e aos homens o de provedores do sustento do lar. Essa divisão histórica de papéis consolidou a crença social de que a família é responsabilidade da mulher e o trabalho remunerado do homem, estabelecendo espaços reservados e bem delimitados a cada um. Mas, e com a entrada da mulher no mercado, como ficou a chamada “divisão sexual do trabalho”? Surgiram mecanismos sociais ou políticas públicas que endereçassem as necessidades da mulher do século 21? Quais as pressões que ainda repousam sobre ela?
Com o surgimento de novos arranjos familiares, a partir dos anos 1960, vimos crescer o número de famílias monoparentais no Brasil, sobretudo chefiadas e providas por mulheres. Ao contrário do que se pensava, a nova posição de chefe de família não representou por si só uma maior autonomia feminina, mas impingiu à mulher a sobrecarga de acumular a função de cuidadora e provedora. Mesmo nas famílias nucleares, a entrada da mulher no mercado de trabalho não carregou consigo a reversão das obrigações e responsabilidades dela para com a família. Em linhas gerais, a sociedade não equaciona o binômio vida privada + vida pública, confortavelmente delega essa tarefa à mulher que tenta resolvê-lo em um descomunal esforço físico e emocional. Nem o mundo do trabalho (setor privado), nem o Estado (setor público) se consideram parte desse problema e, consequentemente, corresponsáveis para sua solução.
A legislação trabalhista brasileira, por exemplo, apesar de garantir diversos direitos às mulheres trabalhadoras formais, como a licença maternidade de 120 dias e creche nos primeiros meses de vida dos filhos, ainda reflete o pensamento social de que o filho é ônus da mulher. Pouco se avançou em iniciativas que trouxessem maior equidade entre homens e mulheres nos direitos e obrigações com os filhos, como a licença paternidade em iguais condições à licença ofertada às mulheres. Outra fragilidade da legislação é o fato de concentrar seus benefícios no período inicial da procriação, quando as demandas oriundas dos cuidados familiares permanecerão ao longo de toda a vida. A falta de vagas em creches e pré-escolas também representa um fator limitador e mesmo quando o acesso acontece uma outra barreira se impõe: o funcionamento predominante parcial de todas as etapas educacionais subsequentes. Esse fato, aliado à jornada de trabalho de 44 horas, se torna um novo obstáculo para a inserção e manutenção da mulher no mercado de trabalho. Tal cenário se torna ainda mais sensível nas camadas mais vulneráveis, onde a dificuldade econômica impede a mãe de contratar qualquer serviço de apoio doméstico para os cuidados com os filhos. O aumento da expectativa de vida é uma outra questão que agrega mais um elemento dificultador para a mulher na conciliação trabalho-família. Socialmente incumbida dos cuidados com familiares, resvala na mulher a obrigação moral de cuidar dos entes mais velhos.
A incapacidade do Estado em considerar como uma externalidade a ausência de políticas públicas que socializem os cuidados familiares constitui a chamada crise dos cuidados que penaliza a capacidade laboral da mulher e nega a elas possibilidades de desenvolvimento social, profissional e emocional. Por outro lado, a iniciativa privada também poderia ter seus programas de diversidade e inclusão mais potentes e efetivos se enxergasse esse trabalho invisível da mulher.
Vemos aqui um problema social sistêmico, gerado pelas injunções de uma sociedade que atribui apenas à mulher a tarefa de solucioná-lo a um custo pessoal muito alto. Uma realidade muito longe da almejada pelos movimentos libertários e que, nos tempos atuais, remonta o modelo patriarcal colonial onde o desenvolvimento e a autonomia da mulher se encontram igualmente submissos, dessa vez pelo tempo que ninguém computa, pelo esforço que ninguém vê.
**Créditos da imagem no topo: Ajwad Creative/ iStock
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