As regras de como quebrar regras
Propor uma revolução sem considerar as conexões com o que as pessoas têm na cabeça é um salto mortal sem rede, mais perto da loucura do que da inovação
Propor uma revolução sem considerar as conexões com o que as pessoas têm na cabeça é um salto mortal sem rede, mais perto da loucura do que da inovação
30 de setembro de 2019 - 14h00
Muito se fala sobre quebrar regras. Até em redutos onde a total liberdade deveria ser intocável, o diálogo com o tempo e o contexto acaba por produzir padrões. Propor uma revolução sem considerar as conexões com o que as pessoas têm na cabeça é um salto mortal sem rede, mais perto da loucura do que da inovação.
O ano é 2009, e lá está você assistindo ao sétimo filme de Quentin Tarantino, ansioso para ver onde o plano de Aldo “The Apache” e dos bastardos remanescentes vai dar ruim. Porque, afinal, todo mundo sabe que Hitler se matou covardemente no escurinho do seu bunker em Berlim, nos últimos dias da 2ª Guerra, evitando, assim, um belo julgamento. Nunca ninguém mencionou um atentado suicida conduzido por judeus ítalo-americanos com leves traços psicopáticos, num cinema parisiense incendiado por outra judia, com a ajuda do seu amante negro, numa vendeta passional. E, propositalmente, em vários momentos do filme você pensa: “É agora que o Hitler escapa”. Até que ambos os planos, dos bastardos e do casal, contra a vida do maior vilão da história funcionam.
Tarantino matou Hitler — pode isso, Arnaldo? Sim, Tarantino quebrou a regra da história como aprendemos. Porque a história como aprendemos já estava bem aprendida e alguma coisa precisava sacudir a roseira da nossa inteligência. Tarantino fez de novo este ano em Era uma vez em Hollywood, mas sem entrar em detalhes aqui para evitar spoiler. Ok! Então Tarantino é um quebrador de regras? Sim e não.
Mesmo Tarantino nunca ousou quebrar as regras do storytelling. Ele é um dedicado estudioso de tais regras, estabelecidas, pasmem, há mais de dois mil anos por Aristóteles, em Poética. Uma cartilha feita pelo filósofo e que ainda hoje é a base de muitos roteiristas de cinema. Basicamente, são essas regras que nos prendem numa trama. Sem regras, num universo onde tudo pode acontecer, você é incapaz de gerar empatia pelos personagens e os espectadores são incapazes de seguir a linha de raciocínio da história e criar expectativas em cima dela.
O esporte, obviamente, também tem suas regras. Elas fazem o espetáculo. Se o jogador pudesse pegar a bola com a mão, ameaçar o juiz etc., qual seria a graça? A música tem regras rígidas, mas isso não impediu os Beatles de revolucionar o mundo. E as regras da propaganda? Bom, tem o briefing, o guideline, o Conar, a quantitativa e a qualitativa, o disaster check e a ferramenta do Facebook.
Os analistas são importantes pois são craques em traduzir tudo em padrões, e só os padrões conseguem ser expressos numericamente, melhorados ou piorados. Mas regras ajudam por um lado e aprisionam por outro, a ponto de, de vez em quando, uma pessoa ou empresa ter que mudar a regra para poder produzir algum avanço. Quer um exemplo? Durante muito tempo, as multinacionais usaram a regra de que a marca deveria aparecer ou ser dita no mínimo quatro vezes em cada peça de comunicação. Até vir a Nike e praticamente nem assinar suas peças, gerando um outro tipo de vínculo, o da coautoria com o público.
O que Tarantino faz é perceber quando algo já pode ser alterado no esquema mental das pessoas. Foi essa percepção que inventou a figura da elipse na literatura e, mais tarde, no cinema: percebendo que a narrativa de toda a sequência de fatos não era mais necessária, os autores se permitiram pular uma série de eventos, que ficavam então subentendidos, e partiam para a próxima sequência. Uma quebra magistral de regra narrativa, que deixou tudo mais interessante e ágil, mas que se tivesse aparecido muito cedo não teria sido compreendida.
Da mesma forma, a perfeição da fotografia das superproduções cessa de produzir encanto e abre espaço para a feiosa cena de um saco plástico voando numa rua qualquer, cena esta que chapou o mundo no filme Beleza Americana.
Tudo a seu tempo, com um pouco de jeito e um pouco de força.
Não se pode fazer um corte de um plano para um mesmo plano? Foda-se, cortei. Não se pode usar trilha humorada para uma cena de violência? Foda-se, usei. Não se pode matar Hitler antes do Holocausto. Foda-se, matei. Mas preste atenção à regra de ouro de toda quebra de regras: não tente quebrar todas ao mesmo tempo — aí, sim, ninguém vai entender nada.
*Crédito da foto no topo: Tookapic/Pexels
Compartilhe
Veja também
Quando a publicidade vai parar de usar o regionalismo como cota?
Não é só colocar um chimarrão na mão e um chapéu de couro na cabeça para fazer regionalismo
Marketing de influência: estratégia nacional, conexão local
Tamanho do Brasil e diversidade de costumes, que poucos países têm, impõe às empresas com presença nacional o desafio constante de expandir seu alcance sem perder de vista a conexão com as comunidades