Brasil: um país de Jacobinas
Brasileiro olha para si mesmo e para as questões sociais que o cercam com uma inconveniente e incômoda distância da realidade
Brasileiro olha para si mesmo e para as questões sociais que o cercam com uma inconveniente e incômoda distância da realidade
Faz poucos dias, li um estudo maravilhoso realizado pela Ipsos em 38 países, denominado de Perils of Perception 2017. Todos nós, brasileiros, precisaríamos ler e refletir sobre os resultados. E, particularmente, nós, cuja matéria-prima de trabalho é o que as pessoas pensam e sentem sobre produtos, serviços, sobre marcas. Enfim, nós, alquimistas das relações perceptuais com a vida ao nosso redor.
Que a lente com a qual a sociedade vê si mesma e vê o mundo à sua volta não traduz propriamente a realidade ninguém discute. Lembro-me de um anúncio famoso da Rolling Stones, nos Estados Unidos, que brincava com isso. De um lado um sutiã queimado, como supostamente teria acontecido na década de 1960 com as mulheres. Na página ao lado, um sutiã candidamente limpo representando o que, de fato, estava acontecendo com milhões de americanas, muito refratárias àquelas palavras de ordem.
Percepção e realidade sempre se “desentenderam”, sempre se contradisseram, mas, de uma forma ou de outra, sempre se integraram em nossas vidas. O olhar ingênuo não alcança o que pulsa sob a superfície. O que ouvimos é apenas um recorte sonoro, uma edição do que a fonte transmitiu. Dizemos o que pensamos, mas fazemos o que sentimos. E assim por diante.
O que o estudo da Ipsos revela é o quanto existe de distorção entre a percepção da realidade e ela própria, naquelas dezenas de países. Entre os 38 países, o brasileiro é o segundo no ranking das lentes mais distorcidas (“Least accurate”, nos termos usados no estudo). Perdemos apenas para a África do Sul. No conjunto de todos os temas avaliados, nosso país olha para si mesmo e para as questões sociais que nos cercam com uma inconveniente e incômoda distância da realidade! Como o Jacobina do conto de Machado de Assis, alguém incapaz de se ver retratado diante do espelho como ele, de fato, é. No conto O Espelho, o personagem central (Jacobina) somente consegue se enxergar quando vê refletida no espelho sua farda, que é o que revela sua aparência social. E não o que ele, efetivamente, é, como pessoa. O estudo da Ipsos me fez pensar que este é um país de Jacobinas.
Os três países com lentes menos distorcidas são os escandinavos, Suécia, Noruega e Dinamarca. Imagino múltiplas razões para explicar a diferença entre a nossa e a lente deles, escandinavos. Uma, em particular, salta aos olhos: a chocante distância entre a formação educacional e intelectual. Alto padrão educacional torna a realidade muito mais acessível à nossa compreensão. Elimina a especulação em torno de temas que não precisam de especulação porque são frutos de evidências, que prescindem de fantasias pessoais. Por exemplo, quando a pesquisa perguntou qual era a porcentagem de garotas, entre 15 e 19 anos, que engravidam, brasileiros responderam 48%. A evidência médica aponta que o número real é 6,7%. O abismo da distorção entre percepção e realidade, nesse caso, é de 41%.
É bem verdade que o estudo trata de dimensões muito mais ligadas a políticas sociais. Mas não custa pensar no impacto do que fazemos em nossas atividades profissionais, como marketing, branding e comunicação, onde a percepção humana é nossa argila. Será que o estudo acende uma luz amarela? A pergunta que não consigo esconder é esta: até que ponto nós contribuímos para alimentar a distorção? Ou, ao contrário, nós aproximamos as pessoas de conquistas autênticas e de seus projetos de felicidade?
Uma excelente pulga atrás da orelha neste começo de ano, em que pretendemos passar tanta coisa a limpo.
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