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Opinião

Desconfie do futebol

Sem alarde, algumas ONGs tiveram impacto maior que empresas, jogadores e políticos para forçar o Catar a mudar para melhor nos últimos 12 anos


5 de dezembro de 2022 - 10h28

Crédito: Getty Images

A polêmica e tão esperada Copa do Mundo do Catar começou há poucos dias e, com ela, os protestos contra os anfitriões. As acusações são muitas: os limitados direitos das mulheres, a ilegalidade da comunidade LGBTQIA+, o “sistema de kafala” a que os trabalhadores estrangeiros estão submetidos (semelhante à escravidão), e muito mais. Estas leis e práticas nefastas precisam acabar para que todos possam gozar dos mais básicos direitos humanos.

Inconformados com a escolha da Fifa, órgãos da imprensa internacional, seleções nacionais e alguns jogadores decidiram agir nos meses que antecederam o evento.

A família real dinamarquesa decidiu não ir ao Catar. Na Austrália, os jogadores fizeram um vídeo criticando as leis que proíbem relações entre pessoas do mesmo sexo. Muitas cidades na França decidiram não promover festas e exibições públicas dos jogos. Um dos principais jornais finlandeses decidiu não mandar nenhum repórter para cobrir a Copa do Mundo.

Algumas marcas também se manifestaram. A Hummel, fornecedora dos uniformes da Dinamarca, escondeu a marca da camisa fazendo-a na mesma cor do tecido. A marca de cervejas escocesa Brewdog fez uma campanha no Reino Unido proclamando-se a “antipatrocinadora” do evento e prometendo doar seu lucro para ONGs dedicadas às causas de direitos humanos.

Há poucos dias, com o início dos jogos, as discussões esquentaram quando a Fifa proibiu o uso das braçadeiras que os capitães de oito seleções usariam com as cores do arco-íris e o Comitê Organizador proibiu a venda de cerveja nos estádios.

Mas a manifestação mais impactante até agora foi a da seleção da Alemanha, com todos os jogadores posando antes do jogo com as mãos cobrindo as bocas. A Copa do Mundo ainda não terminou e as manifestações certamente continuarão.

Todas essas demonstrações parecem genuínas e corajosas na superfície, mas quando investigamos um pouco mais o que há por trás de cada uma delas, descobrimos histórias bem diferentes.

No campo dos negócios, os protestos foram patéticos e claramente ações de comunicação.

A Hummel patrocina somente a seleção da Dinamarca e não tem negócios significativos em outros países. A Brewdog segue promovendo eventos em pubs ingleses para assistir aos jogos além de ter assinado, recentemente, um contrato de venda com a única empresa licenciada para venda de álcool no Catar.

Em relação às cidades e órgãos públicos, as coisas não são muito diferentes.

Paris proibiu Fan Zones, mas vendeu grande parte dos seus imóveis e seu principal clube de futebol — o Paris Saint-Germain — para investidores do Catar. Isso sem contar que o voto decisivo que elegeu o país como sede desta Copa do Mundo veio justamente do francês Michel Platini, então membro do conselho executivo da Fifa.

O mesmo acontece nos campos.

A maioria dos jogadores da seleção da Alemanha protestando em campo, de alguma forma, se beneficia financeiramente dos mesmos regimes que criticam. Cinco dos onze jogadores atuam no Bayern de Munique, que é patrocinado pelo Ha-mad International Airport — o aeroporto do Catar. Um deles — Ilkay Gundogan — joga no Manchester City, clube de propriedade do governo de Abu Dhabi, onde ainda impera o sistema de kafala. Todos vestem os uniformes da Adidas, que tem várias lojas em Doha, na China e em outros países de regimes antidemocráticos.

As únicas conclusões possíveis são que os envolvidos são muito malinformados (por não saberem de seu envolvimento acidental com estes regimes políticos), hipócritas (por achar que as regras não valem para eles) ou mal-intencionados mesmo, tentando manipular a opinião pública.

Manifestações genuínas são importantes para informar, educar e influenciar mudanças na sociedade. Graças ao trabalho incansável de algumas ONGs dedicadas à luta pelos direitos humanos, o Catar foi forçado a mudar para melhor nos últimos 12 anos. Sem alarde, sem campanhas publicitárias e sem viralizar nas mídias sociais, elas tiveram um impacto maior que empresas, jogadores e políticos.

Desconfie das manifestações do futebol. Não há muitos inocentes nessa indústria tão rica e cheia de interesses comerciais e políticos.

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