O caso Ulianópolis e a estética da ruptura
Quando a inteligência artificial (IA) expõe o colapso simbólico da publicidade brasileira
Quando a inteligência artificial (IA) expõe o colapso simbólico da publicidade brasileira
À primeira vista, parece apenas um experimento curioso: uma prefeitura do interior do Pará utiliza uma ferramenta de inteligência artificial generativa (GenAI) para produzir o vídeo promocional de sua festa junina. Sem produtora, sem equipe. Apenas um profissional local, um computador e o Veo 3, do Google. Mas a operação é mais do que um feito técnico. É um sintoma. Um racha. Uma cena inaugural de um novo regime de produção simbólica — e seus inevitáveis conflitos.
Estamos diante de um ponto de inflexão.
Há anos, quem participa de júris como o do Clube de Criação de São Paulo (CCSP) testemunha o fosso que separa o que se produz nas grandes agências da capital e aquilo que emerge nas bordas do mercado. Não por falta de talento — o Brasil é abundante em criatividade —, mas por um sistema que concentrou recursos, infraestrutura e reconhecimento em poucas mãos e endereços.
A publicidade brasileira sempre se alimentou de um paradoxo: vendia inovação, mas sustentava-se em hierarquias industriais rígidas, onde excelência é sinônimo de investimento. Um vídeo com qualidade cinematográfica, locução profissional e direção de arte refinada era — até ontem — algo exclusivo de quem podia pagar por ele. Qualidade era luxo. Criatividade, um privilégio.
O caso de Ulianópolis rompe essa equação. Não se trata apenas de um vídeo bem executado, mas de uma peça publicitária institucional, com estética de alto padrão, feita por uma prefeitura sem acesso a grandes fornecedores ou agências renomadas. A produção gerou controvérsia: seria esse o futuro democrático da comunicação, ou apenas a automatização da precariedade cultural?
Ambas as coisas — e essa é a complexidade.
Por um lado, há uma evidente ampliação de possibilidades. Com ferramentas como o Veo 3, pequenos municípios, coletivos independentes e produtores periféricos podem criar conteúdos comparáveis às grandes campanhas nacionais. Isso significa que a estética da qualidade deixa de ser monopólio dos grandes centros, e isso é profundamente transformador. Em breve, qualquer indivíduo com um celular na mão e uma boa ideia na cabeça entrará nessa briga.
Por outro lado, é impossível ignorar a ironia: para promover uma festa junina — talvez uma das manifestações mais humanas, táteis e comunitárias da cultura brasileira —, decidiu-se pela reprodução digital das humanidades.
O dilema não é novo. A publicidade sempre negociou com a ficção. Mas agora a ficção não precisa mais de corpos.
E aqui reside a pergunta central: o que acontece quando a capacidade de representar supera a necessidade de experienciar?
A resposta não é simples. Porque a tecnologia não é neutra, mas tampouco é inimiga. Ela é uma força de deslocamento — e o que está sendo deslocado, neste momento, é o lugar simbólico da criatividade publicitária.
Num país onde a desigualdade sempre foi um filtro de acesso à representação, talvez não haja nada mais revolucionário do que uma ferramenta que permita que qualquer cidade crie seus próprios delírios visuais com a mesma qualidade do que vemos na Globo. Mas essa revolução vem com um custo: a desmaterialização da presença. O risco de que a cultura se torne um banco de imagens gerado por prompts.
O caso Ulianópolis não é um desvio. É um prenúncio. E, talvez, por isso mesmo, mereça ser debatido com a seriedade que se dá aos grandes marcos históricos: não por ser um vídeo de festa junina, mas por ser o primeiro grande ato público da nova estética da ruptura.
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