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Opinião

Criatividade não é recurso, é identidade

Da gambiarra ao soft power: Brasil transforma improviso, mistura e oralidade em força criativa de alcance global


23 de junho de 2025 - 6h00

Consistência e excelência em criatividade. Foi assim que Simon Cook, CEO do Festival Cannes Lions, na França, definiu o Brasil ao entregar o prêmio de País Criativo do Ano 2025.

Não há dúvidas sobre a nossa performance. Dá orgulho ver e celebrar o talento de tanta gente que é referência e eleva a qualidade criativa de tantas marcas pelo mundo.

Aqui no Brasil, seguimos fazendo o que sabemos fazer de melhor: criar. Improvisar com graça. Misturar com ousadia. Inventar soluções com ritmo. É como se, em tempos de rigidez global, o Brasil respondesse com uma provocação: e se o caminho for justamente o contrário? E se for no calor, na mistura, no improviso, na gambiarra que mora a verdadeira inovação?

Eu sei que gambiarra pode não soar bem, mas continua aqui comigo, pois acredito que temos espaço para desenvolver um novo olhar. Por muito tempo, tratamos nossa criatividade quase como um dom natural, quase acidental. Agora é hora de levá-la a sério. O Brasil não é apenas promissor. É um laboratório criativo em tempo real, especialmente em um mundo em que estruturas tradicionais estão em colapso.

O brasileiro não “dá um jeito”. Ele projeta com urgência. A gambiarra, muitas vezes vista como improviso ou remendo, é, na prática, um mecanismo sofisticado de inovação popular, nascido da escassez, onde a criatividade vira ferramenta de sobrevivência. Gambiarra é uma forma de design adaptativo, funcional e acessível.

Essa lógica de “fazer muito com pouco” dialoga com o conceito contemporâneo dos nossos colegas indianos chamado Jugaad Innovation, ou inovação frugal, que enfatiza soluções econômicas, flexíveis e inovadoras para problemas, muitas vezes com recursos mínimos.

O termo “Jugaad” é uma palavra hindi que pode ser traduzida como uma solução alternativa, inteligente e improvisada, essencialmente um truque criativo para resolver um problema de forma rápida e econômica. Soa familiar?

Aliás, um termo que também existe em outros lugares como China (zizhu chuangxin), Quênia (jua kali) e Filipinas (diskarte). A gambiarra não é só improviso, é desenho criativo em tempo real, um protótipo vivo da nossa relação com o mundo.

A Bia Lopes Maria e o Thiago Costa, fundadores do laboratório criativo Quintal, levam a gambiarra aos palcos de Cannes em uma conversa sobre “design thinking à brasileira”, e eu estou curiosíssima para ouvi-los, saber e aprender mais.

Outra característica bem nossa é a cultura da mistura, a liberdade na linguagem. O Brasil não obedece a categorias. Somos uma nação que, forçosamente, dolorosamente, foi formada na mistura. E dessa história complexa nasceu uma estética própria, imprevisível, ousada.

Na música, transformamos o brega em trap, o pagode em pop, o sertão em sinfonia. Na moda, misturamos estampa de flor com renda, sandália com meia, paetê com neon. Na arquitetura, Lina Bo Bardi e Niemeyer desenharam como quem compõe samba, com curva, concreto, corpo. Essa plasticidade nos permite criar com liberdade. Sem manual. Sem pedir desculpas.

Somos também o país da oralidade. Nossa criatividade se fala, se canta, vira meme. Herdamos dos povos africanos e indígenas o costume de passar conhecimento pela fala, pela roda, pela história improvisada. E isso segue vivo. O repente é improviso e filosofia. A capoeira é luta e poesia. O meme é crítica social e piada de grupo de família. Já viram Cordel do Dia no TikTok? Temos inteligência popular que viraliza, e não por acaso. Aqui, tudo começa com uma fala, uma risada, uma gíria.

Enquanto marcas lá fora gastam milhões tentando parecer espontâneas, o Brasil simplesmente é. A gente inventou o que eles chamam de “authentic mess” antes que virasse conceito de moodboard. A estética brasileira é solar, viva, informal e, acima de tudo, afetiva. Ela não busca perfeição: ela busca presença.

Seja nas cores de Parintins, na moda da Lapa ou no feed bagunçado, existe uma coerência emocional ali que o mundo começa a perceber como cool. O caos virou estética. O exagero, desejo. E o autêntico jeito brasileiro virou tendência global.

E é aqui que entra algo que o Brasil tem e ainda não entendeu que tem: soft power. Sim, temos música, futebol e festa. Mas o Brasil pulsa criatividade também onde raramente se olha com atenção, nos cantos onde inovação se funde com memória, território e identidade.

Quer exemplos?

O Movimento Armorial de Suassuna fez do sertão matéria-prima para uma arte erudita e brasileira, unindo música, literatura, teatro e artes visuais com sofisticação e raiz.

Mestre Espedito Seleiro transformou o ofício tradicional do couro em design de identidade, criando peças que carregam história, cor e orgulho local.

O Reisado e os Brincantes, expressões onde teatro, religiosidade e performance popular se entrelaçam com força dramática e inventividade visual.

E, talvez o mais essencial, nossas raízes indígenas e a inteligência ancestral que está anos-luz à frente nas questões de sustentabilidade, coletividade, tempo e convivência, temas urgentes do cotidiano.

Essas manifestações não são apenas folclore. São também visões de mundo, política cultural, estética do futuro. E o mundo está faminto por novas visões.

O Brasil está pronto. Falta só apostar nele. E se tem uma indústria capaz de expandir nosso soft power, é justamente essa: a mais criativa do mundo.

O Brasil não precisa fabricar sua potência cultural, só precisa reconhecê-la. Porque enquanto o mundo busca autenticidade, coletividade e soluções sensíveis para tempos incertos, o Brasil tem tudo isso, no sangue, no suor e no sorriso.

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