Pelé é uma palavra que relampeja

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Opinião

Pelé é uma palavra que relampeja

Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés


16 de janeiro de 2023 - 16h00

Crédito: Tony Triolo / GettyImages

“O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.”

Em 8 de março de 1958, Nelson Rodrigues definiu Pelé como um rei em uma crônica para a revista Manchete Esportiva. Veja bem: Pelé tinha meros 17 anos, a Copa que iniciaria a sua coroação no reino do futebol ainda não havia acontecido, mas Nelson não pestanejou e cravou, antes de todos, que naquela partida havia um rei. Acho bonito que a história tenha dado a oportunidade de essas duas figuras, geniais em suas respectivas habilidades, terem se encontrado por tantas vezes em lances e palavras. Na mesma crônica, Nelson diz que ninguém irá à Suécia com alma de vira-latas, os outros é que tremerão diante de nós.

Eu não vi Pelé jogar. A arte dispensa o ver para crer. E aqui coloco Pelé como uma forma de arte das mais sublimes. Tenho uma esparsa lembrança da figura do Pelé com a camisa do Flamengo e do meu pai dizendo que aquele era um dia importante. A memória é, também, aquilo que selecionamos. Talvez essa lembrança tenha sido produzida, como quem deseja recordar um momento não vivido. Já dos comerciais de Vitasay e do filme Fuga para Vitória, eu me lembro com exatidão. As revistas do Pelezinho, uma união entre Pelé e Mauricio de Sousa, também me colocaram em contato com o rei em uma versão menino. Busquei agora pelas tirinhas e me deparei com uma pequena maravilha. Pelezinho chuta, percebe que foi gol, salta alto dando o seu soco característico no ar e, na última cena, tenta explicar como foi que voltou com um passarinho na mão. Já teve comercial argentino premiado em Cannes com uma premissa parecida envolvendo montanha-russa e passarinho.

Pelé ganha forma completa para mim quando descubro o documentário Isto é Pelé. Não sei precisar a data, mas eram tempos das videolocadoras de bairro. Até aquele momento, o rei era uma conversa de adultos nostálgicos no meu universo. Eu queria saber de Zico, Júnior, Leandro e companhia. Uma fita VHS mudou tudo. Foi ali que eu entendi Pelé. Melhor dizendo: visualizei a grandeza de Pelé. Porque, por mais que eu assistisse aos lances, há coisas inexplicáveis, impossíveis de entender. Pelé jogava para além da compreensão humana inúmeras vezes. Imagino zagueiros insones deitados na cama depois do jogo, jogadores adversários incrédulos no silêncio completo do vestiário, técnicos repassando infinitamente os lances na prancheta. Todos com uma pergunta em comum. Uma coisa a ecoar que deveria vagar entre a admiração e o assombro: como é que ele fez aquilo? Aquilo é uma gama inteira de coisas. Dribles de todos os jeitos, arrancadas, chutes de qualquer distância, um menu inteiro de cabeçadas, gols, quase gols, passes perfeitos, beleza em todos os movimentos. Pelé fazia caber, em uma palavra, uma enormidade de sentidos. A palavra bola mesmo é um exemplo. Sem Pelé, bola seria uma palavra incompleta ou meio murcha.

Dos textos que li recentemente, fiquei impressionado com alguns relatos em que a simples menção do nome foi capaz de resolver um conflito. Um interrogatório na fronteira, uma certa desavença em terra estrangeira, um repórter em zona de guerra. Para cada situação, uma palavra surge: Pelé. E após essa palavra dita, a tensão dissipa, o sorriso surge. E surge junto uma imagem que Pelé fundamentou e que anda perdida: a de um Brasil encantador, criativo, bonito de se ver. Há uma foto de um cartaz colado em uma esquina de Guadalajara na Copa do México, 1970, que mostra o significado do rei para lugares além dos nossos. Dizia o cartaz: Hoje não trabalhamos porque vamos ver Pelé.

Puskás disse que se recusava a classificar Pelé como um jogador, pois ele estava acima disso. Fontaine relatou sobre uma vontade de pendurar as chuteiras quando viu o rei jogar. O zagueiro italiano que ficou com a cruel missão de marcar Pelé numa final de Copa construiu uma frase que parece título dos grandes anúncios da Nike: Antes do jogo, eu disse a mim mesmo que ele era feito de carne e osso, como qualquer um. Mas eu estava enganado. Pelé foi e continuará sendo o maior jogador da história. A despeito das comparações e das relativizações.

“No tempo do Pelé era mais fácil”. “O futebol era mais devagar”. “Pelé nunca jogou na Europa”. Nunca faltou argumento estapafúrdio para desmerecer o que o Pelé fez em campo. No Isto é Pelé tem uma sequência de bordoadas que ele toma em diferentes partidas. Tem tesoura, voadora, banda, tostão, chute frontal, soco. Não tinha rolamento infinito, não. O rei só ia para o chão quando a coisa era feia mesmo. Pelé jogou por anos sem a existência de cartão amarelo, nem vermelho. A chuteira pesava, a camisa era de algodão, a tecnologia do esporte estava engatinhando. Pelé jogou em condições que a pergunta certa a ser feita é: será que esses jogadores de hoje aguentariam aquelas condições?

Pelé tem a imagem reconhecida em todos os cantos do mundo, mesmo tendo parado de jogar bola décadas antes das redes sociais. Li uma suposição sobre o patrimônio material deixado pelo rei. Se aquele número é verdadeiro, é pouco. Bem pouco perto do que ele fez pelo esporte. Didi inventou o chute Folha Seca, Leônidas da Silva inventou o Gol de Bicicleta, Garrincha inventou a alegria em campo, Pelé reinventou o futebol. Jogadores medianos fizeram mais fortuna que eles. São injustiças do tempo. No mundo de hoje, o futebol deles sobraria. E o que eles faziam em campo renderia conteúdo infinito.

Nelson Rodrigues, certa vez, descreveu Pelé como uma força da natureza. Nas palavras dele, Pelé chovia, ventava, trovejava, relampejava. Eu acho essa definição tão poderosa quanto a imagem de um rei menino, de 17 anos. Quando coloquei aquele VHS para rodar, talvez tenha relampejado no quarto. Talvez, a luz do abajur tenha oscilado enquanto as cortinas balançavam com o vento. Talvez eu sinta as gotas de chuva até hoje. Talvez.

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