Por um Brasil com mais ambição, abertura e repertório
Os três elementos são atingidos somente quando se assume a tarefa, difícil, de abandonar certas crenças e quebrar paradigmas para nos reinventarmos
Por um Brasil com mais ambição, abertura e repertório
BuscarPor um Brasil com mais ambição, abertura e repertório
BuscarOs três elementos são atingidos somente quando se assume a tarefa, difícil, de abandonar certas crenças e quebrar paradigmas para nos reinventarmos
Lembro de um conto do escritor uruguaio Eduardo Galeano passado em um quartel de Sevilha. Nele, os soldados montavam guarda para um simples banquinho — dia e noite, noite e dia, sem saber o porquê. A prática era perpetuada há décadas, transmitida de geração em geração. Até que certo general ou coronel quebrou o protocolo e quis conhecer o intuito da ordem original. Descobriu-se, então, o motivo: evitar que alguém sentasse na tinta fresca, pois o banco havia sido recém-pintado. Trinta anos depois, os soldados seguiam montando guarda para o singelo móvel.
Essa breve fábula, claro, sempre me fez refletir sobre a zona de conforto que se acomete, muitas vezes, em nossa sociedade — a ideia do “sempre foi assim”. E isso se tornou ainda mais presente dada a sequência de catástrofes climáticas a que temos assistido, inertes. Antes de testemunharmos a maior seca da história do Brasil, foi a chuva em excesso que castigou os gaúchos. Um marco para o Rio Grande do Sul e para o país, as enchentes no estado serão lembradas junto a tragédias como o deslizamento de terra na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, e os estragos provocados pela chuva incessante em Santa Catarina, em 2008.
Maiores em número de vítimas, ambos os episódios são superados pelo evento do Rio Grande do Sul em extensão territorial e custo estimado para a reconstrução — cerca de R$ 200 bilhões. Aliás, passados seis meses das enchentes, essa tem sido a pauta protagonista. Os desafios passam por questões de moradia, retomada dos negócios e infraestrutura. Mas, afinal, de que reconstrução estamos falando? Reconstruiremos como “sempre foi”?
Para forjarmos o amanhã que queremos — enquanto cidade, estado ou país — não basta construir de novo: é preciso construir diferente, melhor e criativamente. É preciso visão de futuro. Eventos climáticos extremos tendem a se tornar cada vez mais frequentes, como alertam os cientistas. Partindo dessa premissa, não podemos imaginar um processo de retomada nas mesmas bases do que vínhamos pautando. O debate não pode estar dissociado de questões como inovação e tecnologia — e isso se aplica a qualquer cenário pós-crise. Do contrário, estamos condenados à reincidência. A repetir o script.
O conto que relembrei no início deste texto serve para levantar uma provocação sobre a importância de sairmos do automático e questionarmos aquilo que está posto. Pode ser difícil abandonar certas crenças e quebrar paradigmas, muitas vezes enraizados, para nos reinventarmos. Entretanto, apesar dos desafios, essa virada de chave é uma questão de sobrevivência. E, aqui, destaco três pontos cruciais para tal: ambição, abertura e repertório. É dessas ferramentas que precisamos lançar mão para navegar e redefinir o futuro.
A ambição é o motor que impulsiona indivíduos e organizações a ultrapassarem barreiras. É nossa capacidade de sonhar grande. Por meio dela, podemos construir um futuro diferente, em que o desejo de inovar e melhorar continuamente se traduza em ações concretas para enfrentar desafios e crises. É a ambição que nos leva a sair da mesmice para questionar o status quo e buscar soluções que moldam uma sociedade mais preparada e resistente para o que está por vir.
Para isso, devemos estar abertos ao novo, ao que nunca fizemos antes e — aproximando essa discussão conceitual de nossos desafios práticos — dispostos, sobretudo, a uma rediscussão sobre amarras burocráticas. Ao direcionar nossa atenção às regras impostas, matamos a criatividade. Fechamos as portas para novas possibilidades capazes de nos fazer, inclusive, repensar as próprias regras.
De nada adianta, porém, abertura sem repertório. Mais do que estar aberto ao novo, é fundamental persegui-lo — encontrar meios de estarmos mais expostos a referências que moldam nossa visão de mundo. Nossa capacidade inventiva e de construir alternativas tem muito a ver com a soma de nossas experiências e conhecimentos. Um repertório diversificado nos permite transcender o óbvio, identificar oportunidades e criar saídas criativas para problemas complexos.
Fazer escolhas com base no que é possível é limitante. As soluções propostas pelo Estado — e aqui falo do poder público em todas as suas esferas — já não atendem as expectativas dos contribuintes. Acelerar o processo de transformação digital e modernização, que tem avançado a passos lentos, passa por abandonar a mediocridade, no sentido de contentar-se com o mediano, e buscar o topo. Passa por energia e raciocínio criativo propositivo para a mudança. Com esforços e investimento público bem direcionados, podemos construir um Estado mais preparado, capaz de gerir recursos e ações em momentos críticos.
Esta é a verdadeira reconstrução que precisa estar na pauta do dia, e, mais do que isso, atrelada a ações concretas. Que faça parte, de fato, dos assuntos do cotidiano de lideranças, executivos e gestores públicos, e, principalmente, das conversas sobre o futuro. A catástrofe no RS não foi a primeira crise nem será a última. A grande questão é se, como no conto de Galeano, seguiremos fazendo o mesmo que sempre fizemos — ou se buscaremos criar um país com mais ambição, abertura e repertório.
Compartilhe
Veja também
E se o Cannes Lions premiasse as melhores parcerias do ano?
Num mundo em que a criatividade virou moeda valiosa, colaborações bem construídas se tornaram a força motriz da inovação
Os cases gringos mais memoráveis de Cannes 2025
Iniciativas como The Final Copy of Ilon Specht, vencedor do Grand Prix de film, são exemplos de consistência das marcas e reconhecimento a quem faz parte da história delas