Year of the cat
O novo formato do Cannes Lions, com inúmeras categorias, exige criatividade com resultados
Em 2023, Cannes Lions fez 70 anos. Logo na entrada, lia-se “The Home of Creativity”. Em 2025, a “home” elegeu o Brasil como “Creative Country of the Year” com a justa homenagem ao W. Mas essa casa, que era muito engraçada, tem teto de vidro e vem sofrendo revés na sua criatividade.
Sabemos que Cannes Lions acontece 30 dias depois do Festival de Cinema. Em comum, só a matriz que gerou os dois: filmes. Não sei se é o mesmo tapete vermelho ou se dão uma boa lavada na 5àsec e botam pro jogo. Sendo o mesmo ou não, a criatividade sempre desfilou por ali nos dois festivais.
Enquanto no festival de cinema, a ousadia e a irreverência geram obras inesquecíveis, o novo formato do Cannes Lions, com inúmeras categorias, exige criatividade com resultados.
Primeiro ponto: ao estabelecer que é preciso “matar a cobra e mostrar o pau”, iniciou-se uma esquizofrenia de cases.
Quando o Cannes Lions era só filmes, valia a grande ideia sem precisar da comprovação do departamento de vendas, só a de veiculação (Ops!). Seria como imaginar que todo vencedor da Palma de Ouro precisasse comprovar resultado de bilheteria. Certamente virá, porque o premiado será visto pelo público. E a nossa premiada? Quem viu?
Segundo ponto: as coisas mudaram e o próprio formato do festival também, com muitos ganhos. Mas uma coisa também mudou: a forma de mostrar a criatividade.
Às vezes, parece que Cannes Lions é uma feira de ciências do colégio na qual o criador virou inventor e o resultado da criação só se aplica para aprovação da bancada. Inventa-se a própria invenção.
A criatividade, aquela tal que gerou muito sucesso para os negócios – da agência e do cliente –, precisou encontrar outros jeitos de mostrar que existe e esqueceu da vida que a tornou real: o negócio de criar diferente para fazer diferença nas vendas.
Terceiro ponto: por mais extremo – e foi – o fato polêmico em Cannes, ele é a ponta mais alta do iceberg: a desconfiança submersa de que uma criação ousada e impactante não vende e, portanto, é preciso inventar uma verdade para existir.
Por que tantas palestras defendendo a criatividade num festival de criatividade? O humor vende? Será que num congresso de médicos é preciso defender que a medicina salva vidas?
Descrença na criatividade, comodismo do cliente de não arriscar, o medo das agências de dizerem “não”, o criativo sendo cliente dele mesmo; tudo isso gerou o mundo dos fakes para que uma agência criativa seja vista como…criativa?
A questão não se resolve só porque Cannes resolveu moralizar. O problema está no começo e não apenas no fim. E mais: será que esse modelo de premiação sobrevive, e a que preço? E não falo só em euros.
Quarto ponto: “fazer a diferença” ou “ser commodity”. Bora pra pista e pro campo.
Qual era a diferença entre o Ayrton e o Barrichello, além das piadas com o segundo? Talento? Os dois tinham. Ninguém dirige um Fórmula 1 só porque tem CNH. Mas o Ayrton ousava seguir por caminhos que outros não ousavam, nem o rival Prost. Tinha risco, claro. Mas o que ficou na memória era como o Senna corria, ganhando ou perdendo. Qual piloto você escolheria para a sua escuderia?
A segunda comparação é com o futebol, essa eterna e sofrida paixão. A seleção do Brasil de 1982 foi considerada a melhor do mundo, comparada até com a de 1970 (vi as duas!). A de 82 não ganhou, mas ficou na memória. Sobre a da Itália, que tirou a gente e ganhou a Copa, ninguém fala. Só os italianos, ovvio.
As consequências foram além do choro: futebol bonito e criativo não vence. Racionalizaram a beleza e a emoção do espetáculo pela eficácia. Resultado? Só fomos ganhar em 1994 com a criatividade de alguns jogadores e um horror de futebol no conjunto. Em 2022, três erres, os Ronaldos e Rivaldo, reinventaram a criação.
Óbvio que, hoje, temos métrica, dados, estratégias, novas plataformas e tecnologia para garantir a eficácia do negócio, do futebol à publicidade. Tudo avançou. Mas a criação memorável, vendedora, eficaz, essa anda sofrendo. E regredindo. E se enganando.
Além de Leões, Cannes traz uma verdade: a criatividade precisa voltar a ser o centroavante que faz o gol inesquecível e verdadeiro, e não só a defesa consistente, que não toma gol, mas também não ganha. Ou pode ajudar a ganhar se tiver criatividade para sair jogando.
Enfim, não perguntemos à IA o que ela pode fazer pela criatividade. Vamos nos perguntar o que podemos ou deixamos de fazer por ela.
Quem sabe, teremos menos “gatos” para provar o quanto ela ainda é um bom negócio. Ou pior: evitar que eles subam no telhado.