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Opinião

Presentefobia: a doença das marcas modernas

O futuro virou um ativo publicitário, um território simbólico onde tudo é possível, tudo é bonito, tudo dá certo, o único problema é que o futuro não existe


23 de maio de 2025 - 6h00

Repare bem: Todas as marcas parecem ter virado videntes.

Umas falam com entusiasmo sobre o “consumidor do futuro”, outras juram que estão “construindo o amanhã”. Tem aquelas que se dizem “à frente do tempo”, como se o presente fosse um lugar meio cafona de onde todos e todas deveríamos fugir.

O futuro virou um ativo publicitário, um território simbólico onde tudo é possível, tudo é bonito, tudo dá certo. Só tem um pequeno problema: O futuro não existe. Nunca existiu. E talvez nunca vá existir, pelo menos não como os discursos marketeiros insistem em prometer. O que existe é esse presente aqui, esse mesmo que está na nossa cara, mas que deveríamos olhar por cima. Esse meio ignorado, negligenciado, adiado – tipo aquele boleto que chega e não dá coragem de abrir.

Vivemos uma era estranha, acelerada e ansiosa. Em vez de vivermos o tempo, projetamos outro tempo o tempo todo numa espécie de futurismo compulsivo. O presente se tornou um ponto de passagem, quase um intervalo entre um planejamento trimestral e a próxima keynote do Vale do Silício.

Na cultura, isso se expressa como fetichismo da inovação. No comportamento, como ansiedade crônica. No marketing e na publicidade, como uma compulsão por contar histórias que ainda não aconteceram.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diz que a sociedade contemporânea não é mais disciplinar, mas performática. E performance, claro, exige palco. Nada mais conveniente que um amanhã onde ainda não há público nem crítica, não tem como errar.

No mundo corporativo, isso se traduz em relatórios com timelines que vão até 2040; em campanhas publicitárias que anunciam um futuro inclusivo e sustentável enquanto o call center da marca não resolve o problema do cliente hoje; em estratégias de branding que se vendem como “projetos de impacto”, mas que, na prática, não impactam nem a reunião de alinhamento das terças.

Estamos vivendo uma espécie de “presentefobia”, como se olhar para o agora fosse menos sexy e menos esperto do que viajar em elocubrações sobre o ano que vem. Como se habitar o presente fosse coisa de quem perdeu o bonde da inovação, de quem não tem percepção, de quem tem medo do que não conhece.

Mas aqui vai a grande ironia: Enquanto marcas constroem metaversos e NFTs de propósito, o consumidor está atolado em boletos, ansiedade, urgência emocional e falta de tempo. Ele vive no agora. Literalmente.

Ao apostar todas as fichas no futuro como narrativa principal, as marcas estão reforçando uma das patologias mais graves da nossa era: A ansiedade. Ansiedade é, basicamente, excesso de futuro. É o corpo tentando viver um tempo que ainda não chegou, como diria o psicólogo francês Christophe André.

Do ponto de vista da neurociência, nosso cérebro é feito para responder ao tempo presente. O chamado Sistema 1, descrito por Daniel Kahneman, age com base em estímulos imediatos, contextuais, sensoriais. Ou seja: Não adianta prometer uma experiência incrível pra daqui a cinco anos se hoje sua interface trava, seu app é confuso e seu feed é um cemitério de promessas vazias.

Na publicidade, onde tudo deveria ser sobre empatia e conexão, essa alienação temporal é especialmente grave. Porque a propaganda deveria ser o espaço da escuta, da atenção, do agora, mas virou um exercício de ficção científica.

E se, ao invés de projetar o amanhã, as marcas passassem a dominar a arte de presenciar? Não de apresentar, de presenciar mesmo. Estar junto. Sentir o que está acontecendo. Traduzir a cultura não em relatórios, mas em atitudes, em olhar. Mais no quali que no quanti, olha que audácia.

E se a inovação não estivesse só na tecnologia, mas na coragem de agir no presente? Na ousadia de responder rápido, ser vulnerável, admitir erros, acolher conversas reais em vez de postar mensagens genéricas em datas de diversidade?

E se, no lugar de vender futuros incríveis, as marcas se tornassem especialistas em resolver angústias cotidianas, aquelas que todo mundo vive, mas ninguém quer falar sobre, tipo a solidão silenciosa das mães solo, o racismo estrutural que se esconde em cada esquina ou o cansaço mental de viver em um país que troca de realidade a cada 6 meses?

E se o “branding do futuro” fosse, na verdade, um branding radicalmente presente? Presente nas ruas. No SAC. Nos algoritmos. No feed. No cheiro da loja. No som da notificação. No toque do produto. No repertório do bordão. Na boca do povo. Agora.

O que proponho aqui não é ignorar o futuro, mas parar de usá-lo como bengala estética e moral.

O futuro, do jeito que tem sido tratado, virou desculpa para não resolver o presente. E isso é perigoso. É no presente que tudo acontece. É onde a experiência de marca se dá, é onde a confiança se constrói, é onde a cultura pulsa. É onde as pessoas respiram e enxergam ou não relevância na sua proposta de valor.

Talvez o grande ato de ousadia das marcas more exatamente na coragem de descer do palco da futurologia e sentar na cadeira de quem está vivendo a vida real. Se inserir nas dinâmicas sociais que estão postas sem ter que inventar uma roda por dia, mas de forma realista. Com olho no olho. Com escuta ativa. Com presença verdadeira.

 O futuro não existe, combinado? Ele é, em última análise, só uma ficção que ainda não teve que lidar com o SAC.

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