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Era uma vez o ser humano

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Opinião

Era uma vez o ser humano

A especulação do momento é o início da era pós-narrativa e a morte da internet


22 de maio de 2025 - 14h00

“Brand” – de origem escandinava “brandr” – significa “queimar”. Estampar a ferro em brasa, deixar uma marca que não possa ser apagada. Essa ideia de diferenciação é antiga. Gregos e romanos marcavam garrafas de vinho ou de óleo para luminárias com símbolos que indicavam sua origem e qualidade; produtores de frutas queimavam suas caixas para identificar a proveniência dos artigos comercializados em vilarejos distantes; chineses marcavam suas porcelanas e vasos; há objetos da Índia marcados há três mil anos. Imagine que uma lei inglesa, aprovada em 1266, exigia que padeiros incluíssem suas marcas em cada pão ou bisnaga que vendessem, para que se reconhecesse a origem de pães que não estivessem dentro do peso instituído como adequado na época. Até o pãozinho!

De acordo com a Associação Americana de Marketing (AMA), brand é “um nome, termo, sinal, símbolo, desenho ou combinação entre eles, intencionalmente planejada para identificar as qualidades e serviços de um vendedor ou um grupo de vendedores e diferenciá-los da concorrência”. Pode ser considerado brand, um nome, logotipo ou signo que represente uma marca, um produtor, um produto, um monopólio, um império. Com a especialização da publicidade – a partir da demanda da criação de marcas como valores intangíveis – a palavra brand passou a estar relacionada com algo que criou uma percepção de afeto, uma reputação no mercado. Uma marca é a história de um conjunto de afetos.

Que marca é essa? Qual sua identidade, quais são seus valores, quais as causas em que advoga, como se posiciona, com que grupos dialoga? Essa grande construção das marcas ficou a cargo de empresas de branding: o trabalho árduo de contar uma história capaz de promover experiências únicas. Um tênis que mantém um espírito jovem para sempre, um refrigerante que desperta a felicidade, uma marca de tecnologia que se torna objeto de desejo número 1 em todo o mundo. São storytelling brands e têm como objetivo criar um sentido para seus consumidores. Muito mais do que diferenciar produtos, o branding conta uma boa história para deixar uma marca – e para vender. Storytelling é storyselling.

A especulação do momento – precisamos diferenciar teorias de especulações – é justamente o início da era pós-narrativa. Com todos os exageros das especulações, estão chamando essa era de “dead internet”: a maior parte do que vemos online não seria real, nem gerada por pessoas. São bots e inteligência artificial (IA) interagindo com pessoas (que acreditam estar interagindo com pessoas) e com outros bots e inteligências em um ecossistema gerenciado por algoritmos.

Concordamos com uma cultura da caixa preta de algoritmos em que somos fornecedores de dados para oportunidades de consumo. E esse novo storytelling é esvaziado de sentido e não consegue envolver, encantar, criar estilos, cumplicidade, vínculos afetivos, comover, fazer sonhar, criar necessidades, transportar desejo, marcar um estilo de vida, abraçar causas e propor valores.

Sem nenhum constrangimento e sem perspectiva de regulação, vemos o avanço das falsificações e apropriações se proliferando com a ajuda das AIs. Dois eventos recentes podem te ajudar a desenvolver a questão. O primeiro é o caso do escritor italiano Andrea Colamedici, que inventou um autor – Jianwei Xun –, inventou uma teoria – a Hipnocracia – e publicou livros e artigos como Xun, que ficou famoso e, que, depois de famoso, revelou que Xun não existe, ele seria fruto de seu pensamento unido à escrita das IAs Claude (Anthropic) e ChatGPT (OpenAI). Em sua defesa, o escritor justificou o storytelling que criou como uma forma de crítica às IAs. O segundo evento se liga à teoria da hipnocracia – o episódio Bête Noire (que representa o que tememos visceralmente) da última temporada de Black Mirror – uma ideia de fragmentação da realidade e a criação de um “presente de antecipação constante”, como no artigo de Xun/Colamedici. O algoritmo e as IAs manipulando o ser humano em sua instância emocional, psicológica e temporal, em que ele demanda histórias inúteis infinitamente.

A hiperinflação de storytelling com a hiperprodução de narrativas das IAs vem descaracterizando a linguagem espontânea. Todos os perfis do LinkedIn agora escrevem no mesmo estilo homogêneo, polido, em um elenco de tópicos lineares que explicam absolutamente qualquer coisa. Onde há tão pouca originalidade, onde tudo parece tão artificial, fica difícil de identificar falso ou verdadeiro (já percebi que a IA adora algumas palavras como crucial, pasteurizado, nostálgica, altamente, relevância – definitivamente ela desconhece a precisão de linguagem). E mesmo que a história seja ótima, quem as lê? Um “like” é uma prática de consumo que, como defende o filósofo Byung-Chul Han, intensifica a crise narrativa.

O uso dos meios digitais é aditivo, cumulativo, acelerado e não oferece tempo e disposição para as narrativas. Não seria a internet, de todo modo, um bom meio para o storytelling. O que não justifica decretar a morte da internet. Relembrando Marshall McLuhan, o teórico canadense das mídias, um meio nunca substitui o outro, mas sim, o novo e o velho tensionam para uma modulação entre eles. Contar histórias é indissociável da condição humana. Se as IAs e replicadores passarem a contar histórias por nós, precisaremos encontrar outro meio para potencializar a linguagem dos sentidos e sentimentos mobilizados pelas narrativas.

Vamos nos sentar novamente em torno da fogueira e recuperar essa habilidade que estamos perdendo de contar uma longa história de como um refrigerante inventou o Natal, o Papai Noel, e o maior feriado cristão do ano em quase todo o mundo. Precisamos de mais “era uma vez”, ou “você nem imagina o que aconteceu”, do que microcontos, chistes e bullet points, e novidades inúteis. Se o ambiente hiperinflacionado da internet não é favorável, precisamos de um meio dialético, que ofereça tempo de reflexão, trocando o quantitativo pelo qualitativo

Estamos sendo confrontados com cenários apocalípticos, mas a morte da internet certamente não tem data prevista. Independentemente disso, as histórias devem ser contadas, devem ser ouvidas e devem ser transmitidas. O branding, como guardião do storytelling, deveria levar mais a sério o fenômeno da pós-narrativa e considerar a dominação da internet pelos bots. Se não é possível competir com a produtividade deles, é possível criar diferenciação valorizando as produções humanas, espontâneas e genuínas. A resposta está na simplicidade, não na complexidade; na qualidade, não na quantidade. Abandonar os fluxos limitadores das tecnologias pode ser um ato de rebeldia: dar valor à real beleza da imperfeição humana capaz de viver e contar histórias que marcam, inspiram e transformam. Ou já podemos imaginar o stotytelling das IAs sobre a breve existência humana e o fim do projeto de civilização?

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