Opinião

A inteligência pode ser artificial, mas a música não deveria

Ultimamente, parece que a conversa sobre música tem se desviado da própria música

Gustavo Luveira

Sócio do Bona Casa de Música 30 de julho de 2025 - 14h00

Vivemos uma era movida pela urgência. O algoritmo dita tendências, antecipa desejos e transforma performance em métrica. E é justamente essa pressa em sentir e em mostrar que sentimos, que torna tão sedutora a ideia de automatizar a criação.

Talvez o que nos atraia não seja apenas a tecnologia, mas o atalho que ela oferece: para o sucesso, para a validação, para o aplauso instantâneo. Criar sem dúvida, lançar sem pausa, ser relevante sem risco.

Ultimamente, parece que a conversa sobre música tem se desviado da própria música. Fala-se em tecnologia, escala, inteligência artificial, novas ferramentas de composição. Fala-se em agilidade, produtividade, algoritmo. Fala-se muito. Mas não se escuta.

A chegada da IA na criação musical foi recebida com espanto, euforia e uma dose de oportunismo. Plataformas inteiras já oferecem batidas geradas por máquinas, letras moldadas por prompts e vozes que imitam timbres humanos com perfeição.

Dá até pra compor uma música inteira em menos de dois minutos, sem tocar um instrumento, sem escrever um verso, sem viver nada do que se canta.

Já tem banda com dois discos e mais de 500 mil ouvintes mensais no Spotify e empresas como a Stage Zero, do produtor e hitmaker Timbaland, criando e contratando (sim, contratando) uma artista totalmente construída com IA. A TaTa é um personagem moldado por grandes nomes da indústria pop, como o próprio Timbaland, em parceria com plataformas especializadas em IA generativa.

Como falou Felipe Vassão, produtor e pensador da indústria fonográfica, o problema talvez não seja a IA fazer música, mas o fato de estarmos aceitando qualquer coisa que soa como música como se fosse de verdade.

Se toda simulação passa a valer tanto quanto a criação, o que isso diz sobre o nosso próprio senso de escuta? Sem contar a ideia de que ela usa tudo que já foi feito por algum humano como referência para sugerir algo. Ou seja, ela basicamente usa o que nós – cada um à sua maneira – fizemos e ainda cobra por isso.

A inteligência artificial pode e deve ser uma ferramenta. O problema começa quando a gente esquece que ela é só isso, e tenta promovê-la ao posto de artista.

Porque, por definição, o que é artificial já nos deixa com o pé atrás. Se cada vez mais nos preocupamos com os ingredientes da comida que estamos comendo, por que não nos preocupamos com os ingredientes artificiais que estamos ouvindo?

Nos últimos anos, mais de 60% dos produtores independentes passaram a usar ferramentas de IA na criação musical (MIDiA Research, 2023). E não se trata de teoria. Basta olhar para o que vem acontecendo nas plataformas. A banda Velvet Sundown é um exemplo claro.

O The Guardian publicou recentemente uma reportagem revelando como o streaming foi tomado por músicas geradas por IA, impulsionadas por bot farms e esquemas artificiais de engajamento. Canções criadas por algoritmos, tocadas por máquinas, para alimentar outras máquinas.

Um estudo da GEMA e SACEM (2024) apontou que 35% das músicas geradas por IA são estruturalmente derivadas de padrões já existentes. Repetem sem lembrar. Nenhuma vivência. Nenhuma intenção artística. Apenas ruído com cara de canção. Funciona, mas não marca. E esse talvez seja o maior risco: criarmos muito e significarmos pouco.

O processo acelerou, os custos caíram, mais pessoas passaram a ter acesso à tecnologia, os plugins evoluíram, mas uma dúvida essencial permanece: quando tudo fica possível, o que ainda vale a pena ser feito?

A resposta, talvez, esteja menos na tecnologia e mais na intenção. Porque criar não é apenas organizar sons ou palavras. Não é ser tecnicamente capaz de comandar uma máquina. É escolher o que dizer quando ninguém está pedindo. É errar com propósito, hesitar com humanidade, afinar pela memória e não pela métrica.

Na música grandes feitos, principalmente quando se trata de sons, foram feitos por algum erro ou equívoco. Quem aí lembra da risada do Sting na gravação de Roxanne?

A arte precisa ser feita de dentro para fora. A inteligência artificial, por mais poderosa que seja, opera por fora. Ela simula, compila, prediz. Mas não se frustra. Não teme. Não se sente insegura. Não tenta um acorde torto e decide deixá-lo ali por teimosia estética ou emoção inexplicável.

Uma pesquisa da YouGov (2023) mostra que 74% das pessoas preferem canções feitas por humanos quando sabem que a faixa foi criada por IA. O que revela não apenas uma questão técnica, mas afetiva. Porque a arte toca quando carrega verdade não apenas harmonia.

Estamos, portanto, diante de um paradoxo: a inteligência artificial pode sim ser parte da criação, mas não pode ser a origem da emoção. Pode servir ao artista, mas nunca substituí-lo.

Talvez, mais do que nunca, seja hora de resgatar o que é inato. De trocar a pressa por presença. Porque o que move o público não é a fórmula certa, o refrão preciso ou o efeito sonoro perfeito. É aquilo que escapa. É quando a arte atravessa sem pedir licença.

Porque a arte é o que sobra quando a máquina já entregou tudo que era previsível.