Terremoto em câmera lenta

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Opinião

Terremoto em câmera lenta

“Como você faliu? Primeiro lentamente, e então de repente” - Hemingway, O Sol também se Levanta


5 de setembro de 2022 - 14h00

(Créditos: Lightspring/shutterstock)

Duas mudanças irreversíveis — a demografia e a crise climática — estão se combinando com transformações tecnológicas para alterar as formas de criação de confiança entre empresas, consumidores, funcionários e stakeholders. Olhadas de forma isolada elas parecem acontecer de forma lenta, mas cada uma delas potencializa as demais, aumentando a incerteza sobre os resultados de estratégias consagradas para a conquista dos mercados.

No caso da demografia (a “mãe” da economia), gerações nas duas pontas do mundo corporativo — os mais novos e os mais velhos — demandam maior igualdade de acesso e transparência nos relacionamentos entre a organização e seus funcionários. É sintomático que a diferença de remuneração, um assunto tabu até pouco tempo, comece a “entrar na pauta”. São iniciativas ainda isoladas, mas que devem aumentar, não apenas por práticas de mercados com escassez de talentos (como o de tecnologia) mas também por questionamentos relativos à governança, tais como a diferença de remuneração para homens e mulheres. Mas o cerne da questão é a exposição de empresas em que o alto escalão tem uma remuneração 10, 20 ou até 30 vezes maior que seus subordinados imediatos — o retorno que estes executivos trazem para o negócio realmente justifica esta diferença?

Na medida em que estes assuntos forem cada vez mais debatidos e compartilhados em redes sociais, como os departamentos de recursos humanos irão reagir?

Outro aspecto desta mesma questão diz respeito aos formatos de trabalho. A pandemia acelerou a adoção da tecnologia para o trabalho remoto, mas ao mesmo tempo tornou o lar uma extensão do escritório. Isso implica não apenas em aprender uma nova “etiqueta corporativa”, mas também criar um ambiente em que a confiança vêm antes do controle. Tentativas de controlar o fluxo de trabalho com base em supostas medidas de produtividade através de recursos tecnológicos podem até funcionar no curto prazo e com trabalhadores menos qualificados ou em início de carreira, mas vão provocar revolta e até mesmo problemas judiciais com a média gerência, como demonstra esta matéria do New York Times: The Rise of the Worker Productivity Score.

A combinação da Oikonomia (a organização do espaço doméstico para a produção de valor, termo utilizado na Grécia antiga e que deu origem ao termo “economia”) com a valorização do bem-estar individual por outras métricas que não somente a posse de bens, mas sim através do seu acesso (coisa que o avanço tecnológico também facilita) vai se refletir também na esfera familiar e pessoal, mudando a demanda por diversos serviços e produtos desenhados para atender ao deslocamento diário entre a casa e o escritório — como por exemplo roupas ou almoços de negócio.

Essas mudanças vão se aprofundar à medida que os estragos da crise climática afetam não apenas as relações de consumo, mas avançam pelas cadeias produtivas de formas que sequer suspeitávamos. Na Inglaterra, as ferrovias tiveram que operar em velocidade reduzida por vários dias já que o calor fez os vãos entre os trilhos se juntarem, enquanto o baixo nível do rio Reno prejudica a distribuição de cerca de U$ 80 bilhões em mercadorias e insumos. E isso é apenas um trailer do que virá com cerca de 2,7 bilhões de pessoas tendo que migrar por motivos climáticos nas próximas décadas — foram 1,8 milhão somente nos EUA no ano passado, de acordo com o excelente Disorder: Hard Times in the 21st Century, de Helen Thompson. Do vinho ao iogurte, passando pela educação e saúde, muita coisa vai ter que mudar nos sistemas produtivos e distributivos, com óbvias implicações no marketing e comunicação.

O mundo de hoje é resultado da interação das ideias de ontem com a evolução das forças históricas (demografia, cultura, tecnologia, economia, regulamentação…), a natureza e o acaso. O mundo de amanhã será o embate deste resultado com outras ideias, e não com as que nos trouxeram até aqui. Entender como estes pequenos tremores vão se combinando e criar novas concepções para se adaptar gradualmente é mais seguro que esperar acertar o momento exato para começar a correr

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