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Opinião

Uma Daslu para morar

Daqui para frente, o quanto a marca vai ser valorizada dependerá da condução estratégica que será feita dela


24 de junho de 2022 - 6h00

Crédito: Reprodução/iStock

A recente compra da marca Daslu, por R$ 10 milhões, pela incorporadora Mitre Realty, colocou novamente a antiga queridinha das brasileiras debaixo dos holofotes, lugar do qual ela tinha saído após ter sido decretada sua falência nos idos de 2016. A marca, que teve sua origem no apelido das duas Lu (Lucia Piva de Albuquerque e Lourdes Aranha), fundadoras da boutique, lá em 1958, passará agora a ser estampada em empreendimentos imobiliários de altíssimo padrão.

Ou seja, apesar dos percalços, o seu brand equity ainda é alto. De marca confidencial somente para iniciados a alvo de operação hiper mediatizada da PF, inesgotável tema de matérias jornalísticas, trabalhos acadêmicos e livros, a Daslu ainda continua sendo sinônimo de luxo no Brasil. Mas, o que é que a Daslu tanto tem?

As Lus começaram trazendo marcas cariocas – numa época em que o Rio era polo cultural do Brasil – para sua casa paulistana no bairro da Vila Nova Conceição. Lá atendiam amigas e amigas das amigas, todas oriundas da alta sociedade local. A princípio caseiro, o negócio foi aos poucos tomando proporções maiores.

Mas foi quando a Eliane Tranchesi, filha de Lucia, assumiu a marca nos anos 80 que ela realmente deu um boom. Materializando a aura de exclusividade da loja em uma assinatura, Eliane lançou a marca própria da Daslu. Essa marca, a princípio só de roupas femininas, foi depois declinada em uma sequência de segmentos até se tornar uma espécie de marca guarda-chuva que validava o que tinha por baixo.
Crescendo, a loja passou a empregar filhas de pessoas conhecidas para trabalhar lá. Nasciam as famosas dasluzetes. Mistura de socialites com vendedoras, influencers antes da era digital. Elas circulavam pelas mesmas festas que seus clientes e trajavam as mesmas roupas. O seu atendimento tinha um ‘quê’ de high low: amigável e sem frescuras, mas respeitando os códigos de quem pertence aos mais altos estratos sociais.

Desfiles internos à loja eram organizados, e revistas caprichadas produzidas. Frequentar a loja da Vila Nova Conceição era sinal de distinção. Ser presenteado com a caixa preta estampada com a assinatura da loja funcionava como um código de acesso a um grupo restrito. Criava-se o lifestyle Daslu. Bem antes de se falar em experiencia de consumo, a Daslu a inventava aqui no Brasil.

Eliane foi também responsável por trazer marcas estrangeiras ao país após a abertura dos portos em 1990. Nas araras da Daslu, as marcas nacionais foram aos poucos cedendo espaço para grifes europeias. A consagração veio em 1996 com a instalação da Chanel e a venda de mais de 70% da coleção no dia do lançamento. Dez anos depois, a Chanel brasileira continuava exclusivamente na Daslu e ainda era a que mais vendia por metro quadrado no mundo.

Foi no final dos anos 1990 que a Daslu, até então loja confidencial, passou a ser notícia recorrente na mídia nacional com o aumento das importações de roupas de grifes no Brasil, constantemente noticiadas, mas também pelo processo de expansão da loja que chegou a ocupar 23 casas do bairro paulistano. Filas de carros estacionados em frente ao conjunto de casas (sem placa, sem vitrine, trés exclusif) e movimentação cada vez maior no bairro residencial, segundo o plano diretor da cidade, fizeram com que a loja tivesse que mudar de endereço.

Em 2005, com a mudança para a Villa Daslu, um casarão néo clássico um tanto megalomaníaco nas margens do Rio Pinheiros, a Daslu não só inaugurava o que viria a ser o polo do consumo de luxo na capital paulistana – o eixo Marginal Pinheiros-Berrini- mas também um novo modelo de negócio. De fato, na mudança Eliane Tranchesi não se contentou em reproduzir o modelo consagrado da Vila Nova Conceição: ela o ampliou e a loja multimarcas tornou-se o que passou a ser conhecido como o templo do luxo.

Foi conservado o que fazia o charme da loja: uma divisão em cômodos; sessão feminina e masculina separadas tais dois closets distintos de uma grande casa; um atendimento exclusivo por dasluzetes, e muita roupa de grife. Em torno disso constituiu-se o primeiro ecossistema de marcas de luxo do país. Coabitavam debaixo da marca guarda-chuva Daslu (nessa época ainda responsável por 70% do faturamento da loja) marcas de segmentos tão diversos quanto vestuário, restauração, viagens, automóvel e até aviação.

Mais uma vez, ao congregar marcas e serviços muito distintos em um único espaço, a Daslu inovava. Em um mesmo lugar o consumidor podia agendar sua lua de mel e celebrar seu casamento no Terraço Daslu; comprar um carro e roupa para seus filhos. Tranchesi dava um passo adiante no conceito de experiência de marca.

Em seu trabalho acadêmico “Daslu: a construção da identidade de classe por meio do consumo de luxo”, Marie-Océane Gazurek explica que “com a instalação da loja em um lugar de maior visibilidade e acesso mais fácil, o público consumidor foi redefinido, atraindo pessoas que detinham o capital financeiro para consumir ali, mas não ousavam antes no espaço privado da Vila Nova Conceição. O que fidelizava os consumidores tradicionais e atraia os consumidores recentes era o que esse consumo representava; a inserção em uma determinada classe social, a da elite paulista, e o acesso aos seus ritos e códigos. A Villa Daslu se constituiu em mediação relevante na construção de uma identidade de classe na cidade de São Paulo.” Ou seja, o que era consumido ali não era somente “o produto em si, mas o ingresso em uma classe social distintiva, exclusiva e seleta.”

Em uma época em que o luxo global se preocupava com lucro acima de qualidade e da preservação das suas raízes artesanais, a Daslu fez figura de resistência, encarnando o luxo à l’ancienne: empresa de uma família só e não de um grande grupo, proporcionando uma experiência personalizada e inigualável, capaz de criar uma comunidade em torno de si. No entanto, o mesmo ano da inauguração no prestigioso endereço novo marcaria o começo do fim para a Villa Daslu com a deflagração da operação Narcísico da Polícia Federal.

O resto é história: mandados de prisão, multas milionárias, perda de confiança dos fornecedores estrangeiros, esvaziamento das araras, primeira venda da marca, demolição da Villa Daslu, falecimento da Eliane Tranchesi, abertura das lojas Daslu em diversos shoppings, até o despejo da última de outro templo do luxo paulistano: o Shopping Cidade Jardim, por falta de pagamento de aluguel, em 2016.
Pois bem. Seis anos depois a marca é comprada por um valor que, se está longe de fazer jus ao seu faturamento dos dias áureos, atesta que a história que ela construiu tem grande relevância, chegando a ocultar que passou por esse processo reputacional. O valor real da marca é difícil ser avaliado, já que realizar uma valuation de uma marca extinta é um processo complicado.

Não há dúvida que a Daslu foi extremamente precursora em sua capacidade de organizar uma comunidade em torno da marca, de comunicar o sentimento de pertencimento a um seleto clube; de congregar várias marcas debaixo do seu poderoso guarda-chuva, valiosos ativos intangíveis com os quais todas as marcas sonham hoje. No entanto, nos parece imprescindível que, seis anos após a sua falência e quase vinte anos após seu auge, ela se submeta a um processo de contemporaneização.

Ela, que era uma marca ultra contemporânea, precisa hoje passar por um novo olhar, trazer à tona a sua essência além do imaginário de família rica paulistana que encampava. Em 2005, a celebração escancarada da riqueza, as moças vestidas de empregadas francesas de filme servindo discretamente as clientes abastecidas e os valets vestidos com indumentária de colonos europeus na África quando a coleção vigente celebrava o continente, não chocavam tanto quanto em 2022, quando nosso olhar enxerga uma teatralização constrangedora das disparidades sociais.

Sabemos hoje da importância de a marca ter um propósito claramente definido, que oriente suas ações. Qual será o da Daslu? As grandes marcas de luxo evoluíram em sua comunicação, voltando às suas raízes para resgatar o que lhes é próprio e importante, e hoje demonstram engajamento em causas, indo além do que pode ser considerado por críticos como algo fútil e efêmero. Qual resgate fará a Daslu nessa nova fase da sua história? Ao migrar para um mercado radicalmente diferente do no qual cresceu, a Daslu terá que se ressignificar para seus stakeholders. E quem serão eles? Ex-consumidores fiéis ou recém atraídos pela patina de uma marca outrora brilhante?

Daqui para frente, o quanto a marca vai ser valorizada dependerá da condução estratégica que será feita dela.

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