Vamos falar sobre o não falado

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Opinião

Vamos falar sobre o não falado

Projeto voluntário de um grupo de amigas, o site “Vamos falar sobre o luto?” é um exercício de empatia, do qual não saímos os mesmos


19 de fevereiro de 2018 - 13h50

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando na direção contrária. Ele os cumprimenta e diz: “Bom dia, meninos, como está a água?” Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta: “Água? Que diabo é isso?”

Assim, David Foster Wallace abriu um discurso de paraninfo para os formandos de uma universidade norte-americana, alertando para a consciência de que o real e o essencial ficam escondidos na obviedade, ao nosso redor.

Créditos: reprodução

Conversei com a Ritinha Almeida, a mente inquieta e brilhante do planejamento, que, a cada encontro, mesmo que seja breve, vem com um chacoalhão diferente. Quando fomos apresentados, ela saiu com essa, logo depois do prazer em conhecer: abriu uma agência? Não vai fazer a cagada de subir no salto, hein? Dessa vez, não era sobre o mercado que eu queria falar. O assunto que me interessava era o “Vamos falar sobre o luto?”, um projeto voluntário de um grupo de amigas que juntas criaram algo que emociona, toca e tenta tornar o luto um assunto possível. Já faz um tempo que eu conheci o site por meio do querido Paulinho Camossa, com o seu depoimento “Vai viver, cara”. Sem hesitar, posso dizer que é das coisas mais lindas e plenas que já li.

Conecto essa ponte com a Rita, e ela conduz o raciocínio: “A gente se transforma. É uma transformação imediata na sua vida. Você tem de ter uma nova visão e raramente fica no mesmo lugar. Primeiro, você tem um tranco. Eu não sabia que eu conseguiria lidar com um troço desses. Ao mesmo tempo, isso te deixa em outro nível para aguentar as coisas. Eu consigo olhar o mundo de um jeito diferente agora.” Ler os relatos também nos transforma a cada linha. É um exercício de empatia, do qual não saímos os mesmos.

Pergunto se os homens têm dificuldade em tocar no assunto luto. Não me espanto quando ela diz que quase 90% do público é feminino. Relembro a cultura do engole o choro, e é a minha mulher, psicóloga, que esclarece: “Quem não vive o luto dificilmente sai dele. E, assim, não há como se reinventar.”

Créditos: vernonwiley-iStock

Não sei ao certo quando e como devo falar sobre a experiência pessoal da Rita com o luto. Ela percebe, óbvio, e me enlaça: “Eu ganhei a possibilidade de falar do meu filho de um jeito muito de boa, sem vergonha, lembrando dele com carinho. A presença dele é muito maior em mim.” A capacidade de se colocar no lugar do outro, que ela exala, cobre a sala com a sensação de um cobertor quente e acolhedor. A conversa tem desdobramentos que a tentativa de reprodução aqui não chegaria aos pés do relato dela. Desligo o gravador, mergulho.

Discutimos a cultura egoica do mercado, questiono se não ficamos na superfície das coisas, ela relembra que, antes da causa, é imprescindível haver uma verdade. Desistimos dessa rota. Eu abandono a tentativa de fazer qualquer metáfora ou correlação com o que aprendi e ouvi. Escrevo aqui apenas como um convite para você conhecer o projeto. E quando digo conhecer, quero dizer estar aberto a se emocionar no meio da sua rotina.

Roubo mais uma vez da minha mulher: “Muitas pessoas são felizes e não sabem. Não são capazes de perceber, pois estão olhando para o que não conseguiram, não fizeram, não conquistaram, não visitaram. Na outra ponta, há as pessoas com sensibilidade e percepção aguçada para o todo, para as conquistas e que aprendem com as perdas.”

E essa reflexão me leva aos peixes, a Rita, ao projeto, ao seu grupo de amigas que reinventam a vida. Ela sabe que diabo é a água, que há diferentes temperaturas no percurso. E, assim, ela continua a nadar e, de quebra, a nos levar com a corrente.

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