A arte tem o poder raro de nos fazer ver de novo
Um dos maiores instrumentos de mudança de perspectiva no Brasil, a Bienal é um espaço onde conseguimos enxergar o que a rotina insiste em esconder

Registro da obra de Moffat Takadiwa na 36ª Bienal de São Paulo (Crédito: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo)
Ela desloca o olhar, provoca reflexão e, muitas vezes, transforma mais do que discursos ou políticas. Para mim, a arte é um dos maiores instrumentos de mudança de perspectiva, um espaço de pausa em meio à pressa, onde conseguimos enxergar o que a rotina insiste em esconder.
É por isso que a Bienal de Arte de São Paulo sempre me inspira, traduz o tempo que vivemos, com suas urgências, contradições e esperanças.
E, neste ano, sob o tema “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”, a Bienal se torna um convite à autocrítica, um chamado a repensar o que estamos fazendo com o planeta e com as relações que sustentam a vida.
Mais do que um evento estético, a Bienal propõe uma reflexão sobre a ação humana: o que se cria, o que se transforma e o que se degrada quando o progresso é confundido com avanço.
Entre as muitas obras expostas, uma em especial me chamou a atenção: o trabalho do artista zimbabuano Moffat Takadiwa, que constrói instalações monumentais a partir de resíduos de consumo, como plásticos, cabos, metais, cerdas de escova de dente e teclas de computador.
O que mais me surpreendeu? Justamente o uso desses dois elementos tão cotidianos e, ao mesmo tempo, tão simbólicos: as teclas de computador parecem representar essa humanidade cada vez mais digitalizada, onde tudo passa por telas e dispositivos.
E as escovas de dente, objeto tão íntimo e repetido, revelam o volume quase infinito de resíduos invisíveis que produzimos todos os dias.
Se a gente parar para pensar em quantas teclas quebradas ou escovas gastas existem no mundo, é quase impossível dimensionar.
Essa constatação me levou a uma reflexão simples e brutal: o lixo é quase infinito e talvez nunca consigamos dar conta dele.
Takadiwa transforma esse excesso em arte, mas sua beleza carrega uma denúncia: a estética do acúmulo é também a anatomia da nossa irresponsabilidade coletiva.
Já o coletivo Forensic Architecture leva essa mesma inquietação a outro campo, o da investigação.
Usando modelagens tridimensionais, imagens de satélite e dados, eles transformam a prova em narrativa visual, revelando como o impacto de duas gigantes petrolíferas se inscreve na paisagem e nas estruturas destruindo um território.
É a arte que denuncia o que a história tenta esconder e que lembra que cada ruína carrega a marca de uma decisão humana.
Essas obras ganham ainda mais força neste momento de COP 30, que acontece no Brasil, em Belém.
E há um dado que não pode ser ignorado: 55% da população de Belém vive em áreas de favela ou assentamentos precários.
A cidade que sedia o principal encontro global sobre o clima é, ela mesma, um retrato da desigualdade ambiental.
Ali, onde a floresta encontra a vulnerabilidade urbana, é evidente que a degradação do meio ambiente também nasce da desigualdade econômica.
Sem inclusão, justiça social e planejamento sustentável, o desenvolvimento continua sendo apenas outro nome para exclusão e destruição de territórios.
A Bienal nos lembra que “humanidade” é verbo. Ser humano é um exercício cotidiano de escolha, de cuidado e de coexistência. É exatamente isso que a COP 30 precisará traduzir em compromissos: não apenas salvar florestas, mas reconstruir relações inter-econômicas, que reflitam e contemplem a necessidade de todos nós. Porque, no fim, o planeta não precisa apenas de mais tecnologia ou metas, precisa de humanidade em prática.