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Orgulho e preconceito: a jornada de mulheres PCDs até a liderança 

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Orgulho e preconceito: a jornada de mulheres PCDs até a liderança 

Quatro executivas com deficiência compartilham suas histórias, desafios e fortalezas da caminhada até posições de destaque em empresas 


18 de setembro de 2024 - 9h27

Hoje, no Brasil, menos de 1% das pessoas com deficiência empregadas ocupam posições de alta liderança no mercado de trabalho. Já em cadeiras de média liderança, o número sobe para 12%. Existe claramente um degrau quebrado para que pessoas com deficiência alcancem os cargos mais alto no mundo corporativo. Isso porque mais de 60% delas estão em posições de base, atuando como auxiliares e assistentes. As informações são do estudo “Pessoas com Deficiência e Empregabilidade”, de 2023, realizado pela Noz Inteligência em parceria com a consultoria Talento Incluir. 

A mesma pesquisa aponta que 34% das pessoas com deficiência no Brasil estão desempregadas. Entretanto, entre os empregados, a média salarial também varia entre PCDs e pessoas sem deficiência: enquanto a de uma mulher sem deficiência é R$ 1.791,42, a da trabalhadora com deficiência é R$ 1.411,77, de acordo com um levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 

“Isso não é falta de capacidade. As empresas muitas vezes buscam no lugar errado ou querem pagar salários muito baixos para posições qualificadas. A balança está totalmente desfavorável”, pontua Patrícia Albuquerque, presidente do conselho fiscal do Museu Afro Brasil, membro do conselho fiscal da Rede Mulher Empreendedora e fundadora e CEO da One Eleven, empresa especializada em consultoria financeira.

Falta de acessibilidade e preconceito no trabalho

Patrícia vive com uma limitação na perna direita, sem poder flexionar o membro por completo. Em 2015, ela sofreu um acidente doméstico que resultou numa fratura grave. “Os médicos chegaram a achar que eu nunca mais caminharia. Fiquei um ano sem andar e, ao retornar ao mercado de trabalho, enfrentei diversos desafios”, conta.  

A começar pela falta de acessibilidade. “Minha mesa não permitia esticar a perna. O acesso ao prédio também era complicado, com rampas de asfalto irregulares, o que era difícil para mim enquanto usava muletas”, lembra Patrícia. Como sua deficiência não é aparente, a conselheira enfrenta esse desafio adicional da deficiência invisível. “Para facilitar, comecei a usar o colar do girassol, que indica deficiências ocultas, mas isso também gera preconceito. Já recebi recadinhos quando estacionei em vagas destinadas a pessoas com deficiência”, relata. 

Patrícia Albuquerque é presidente do conselho fiscal do Museu Afro Brasil, membro do conselho fiscal da Rede Mulher Empreendedora e fundadora e CEO da One Eleven (Crédito: Divulgação)

Daniela Bortman também passou por uma experiência semelhante. Quando era aluna de medicina na faculdade, sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica. À época, ela ainda não havia escolhido sua especialidade, mas ao retomar os estudos, após o acidente, ela ouviu que não poderia se tornar médica devido à condição.  

“No começo, concordei com isso, até reconhecendo o preconceito nas minhas próprias crenças. Mas, com o incentivo do meu pai e minha persistência, voltei. Descobri que ainda tinha ideias, sonhos e vocação. Percebi que o preconceito em torno da minha condição era uma ‘fake news’”, afirma. 

Hoje, Daniela é especializada em medicina do trabalho e head de medicina ocupacional e saúde na Bayer do Brasil. “Acho super importante destacar que reconheço os privilégios que tive, tanto pela rede de apoio quanto pela estrutura que me permitiram chegar até aqui. A própria Bayer me dá todas as condições para eu fazer o meu trabalho da melhor maneira, inclusive com uma ajudante contratada para me apoiar”, diz. 

Daniela Bortman é head de medicina ocupacional e saúde na Bayer do Brasil (Crédito: Divulgação)

Para chegar ao ponto atual, Daniela enfrentou um período de reabilitação e aceitação. Nesse processo, enfrentar os “nãos” se tornou uma tarefa constante. “A gente tem que provar o tempo todo que é possível, sem deixar isso abalar nossa saúde emocional ou nossas relações profissionais”, reflete. 

Capacitismo, autoconhecimento e saúde mental

O capacitismo é um dos grandes vilões na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. “Esse preconceito faz com que as pessoas olhem para quem tem uma deficiência e imediatamente enxerguem uma incapacidade. Quando eu chego em certos espaços, percebo que há muitos julgamentos prévios, antes mesmo de me conhecerem. Provavelmente, ao me verem sem uma perna e um braço, muita gente imagina que eu não dirijo, que não estudei, que vivo de benefício do INSS, que não tenho uma vida ativa”, afirma Daniela Sagaz, head de diversidade, equidade e inclusão na Mondelēz Brasil. 

Mesmo no caso de pessoas com deficiência congênita, como acontece com Daniela Sagaz, a adaptação também perpassa pelo cuidado com a saúde mental. Uma de suas primeiras experiências profissionais foi receber como devolutiva de um processo seletivo que a empresa não poderia contratá-la por falta de acessibilidade. “Essas atitudes machucam, claro, mas, com o tempo e muita terapia, fui desenvolvendo meu autoconhecimento. Isso me trouxe uma visão mais clara dos meus valores, das minhas competências e do que realmente sou capaz de entregar”, reforça Sagaz. 

Daniela Sagaz é head de diversidade, equidade e inclusão na Mondelēz Brasil (Crédito: Divulgação)

O caso da Isa Meirelles foi diferente. Mesmo nascendo com um glaucoma no olho esquerdo que a impede de enxergar, ela só foi entender que era uma pessoa com deficiência e que precisava de adaptações na fase adulta, nas suas primeiras experiências profissionais. “Até então, nunca tinha me reconhecido como uma pessoa com deficiência. Trabalhar no Itaú me expôs aos desafios enfrentados por pessoas com deficiência dentro das empresas, principalmente pela falta de acessibilidade. Nesse período, percebi a necessidade de recursos acessíveis no meu trabalho com comunicação”, reflete. 

Hoje, Isa é manager de comunicação interna e B2B no Google Brasil. Além disso, ao enfrentar os desafios do mercado de trabalho como PCD, ela empreendeu na área de acessibilidade comunicacional e fundou a Deficiência Tech, uma comunidade para inclusão de profissionais com deficiência na tecnologia, além do Café com Elas, um grupo de networking para mulheres com deficiência.  

Isa Meirelles é manager de comunicação interna e B2B no Google Brasil e fundadora da Deficiência Tech (Crédito: Divulgação)

Com apoio da empresa, Isa descobriu adaptações que melhoram seu dia a dia. No Google, ela passou a utilizar um monitor curvo e outras ferramentas que facilitam sua escrita e leitura, como o uso da voz para escrever e-mails, por exemplo. 

Empreendedorismo como alternativa

O empreendedorismo acaba sendo uma das saídas para as pessoas com deficiência que buscam ocupar um espaço no mercado de trabalho. Segundo o estudo da Noz Inteligência, 2% dos PCDs são empreendedores e 2% são autônomos e consultores. “Muitas pessoas com deficiência acabam criando suas próprias empresas ou canais, porque o ambiente corporativo ainda é difícil de se adaptar. Para mim, o principal desafio foi aceitar que eu podia estar no mercado de trabalho convencional”, afirma Isa. 

Ocupar uma posição de alta liderança sendo uma pessoa com deficiência ainda é solitário e carrega vantagens e desvantagens. Para Daniela Sagaz, existe uma pressão adicional na busca pela perfeição para provar seu valor no espaço que ocupa. “Carrego a responsabilidade individual e muitas vezes me sinto sobrecarregada pela necessidade de corresponder às expectativas que estabeleci para mim mesma, para garantir espaços de liderança para outras pessoas com deficiência”, afirma. 

Orgulho e aceitação

A aceitação é um processo longo e desafiador. Para Patrícia Albuquerque, foi um longa jornada até entender e abraçar suas diferentes interseccionalidades, como uma pessoa com deficiência, acima de 50 e negra. Durante muito tempo, ela escondia sua identidade para ser aceita.

“Ao me encontrar nessa condição de pessoa com deficiência aos 51 anos, senti uma vontade enorme de compartilhar minha história. Hoje, busco estar em uma empresa que me aceite como sou. Isso não significa apenas ser escolhida pela companhia: eu também escolho a empresa”, destaca. 

Daniela Sagaz também reforça a importância de colocar luz sobre o assunto e, mais do que isso, ter orgulho de ser uma pessoa com deficiência. “Dentro das empresas, vemos movimentos fantásticos sobre o orgulho LGBT, racial e a potência das mulheres. Mas eu acredito que também precisamos ter orgulho de sermos pessoas com deficiência. Precisamos nos inspirar e mostrar que podemos chegar lá, que conseguimos. É essencial tornar essas histórias mais visíveis e garantir que sejam reconhecidas.” 

Habilidades de liderança

A deficiência não traz apenas desafios para as vidas e carreiras dessas pessoas. Existem também as fortalezas que a condição traz e desenvolve. A necessidade de enfrentar problemas diários fomenta a capacidade de inovação, como afirma Daniela Bortman. “A gente tem que descobrir como fazer a mesma coisa que os outros, mas de um jeito diferente, várias vezes ao dia. Essa resiliência, junto com a inovação para encontrar novas soluções, é uma das principais habilidades que essa trajetória me trouxe.”

Além disso, existe uma transformação na maneira de liderar. Para Daniela Sagaz, o processo do autoconhecimento revelou sua capacidade de liderar pela inspiração e pelo exemplo positivo. Patrícia Albuquerque também identificou essa mudança. “Meu estilo de liderança com o time mudou muito. Agora, tenho uma escuta muito mais ativa e uma preocupação maior em inspirar e motivar os outros, independentemente das adversidades que enfrentamos”, afirma. 

Por fim, a conselheira deixa um recado para outras pessoas com deficiência: “nunca subestimem seu potencial. Enfrentem as adversidades com coragem e confiança, sabendo que cada passo dado é em direção a um objetivo que vocês realmente desejam. Acreditem na força da sua história e usem-na como inspiração, não apenas para vocês mesmos, mas também para ajudar outras pessoas a alcançarem suas metas pessoais e profissionais”, aconselha Patrícia. 

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