As tendências que devem redefinir o consumo no Brasil
Karen Sumie Fontana, sócia e chief culture & strategy officer da FutureBrand, traz recorte feminino de novo estudo da FutureBrand

Karen Fontana, CCSO e sócio-diretora da FutureBrand São Paulo (Crédito: Divulgação)
A FutureBrand lançou, em novembro, a segunda edição do relatório “Tá Quente, Brasil!”, que identifica os paradoxos que moldam o imaginário e o comportamento dos brasileiros nos últimos anos, revelando um país que simultaneamente valoriza sua cultura, revisita tradições e busca novos modelos de existir.
Para entender como essas tensões afetam o consumo, a comunicação e o papel das marcas, sobretudo para as mulheres, entrevistamos Karen Sumie Fontana, CCSO e sócio-diretora da FutureBrand São Paulo.
Ao longo da conversa, ela comenta os principais movimentos destacados pelo estudo e discute as oportunidades e responsabilidades das empresas diante de um público que ao mesmo tempo está mais crítico, mais vulnerável e ansioso por referências confiáveis.
Meio & Mensagem — Vemos um interesse muito grande do mundo no Brasil, a ver a COP30, shows internacionais, o Oscar, Cannes, e até a moda. Esse interesse global também se reflete na identidade do brasileiro e na valorização da cultura local?
Karen Fontana — O estudo fala muito sobre contradições. De um lado, estamos valorizando outros elementos para além dos estereótipos de samba e futebol. Acho que a COP trouxe um olhar mais global e importante para que a gente exportasse o melhor da nossa cultura. Mesmo no índice de soft power, vemos o Brasil dando um salto, o que é superbacana, porque mostra como a gente exporta nossos regionalismos, a diversidade cultural e a culinária regional, o que ajuda a construir novas imagens e a fortalecer o orgulho nacional.
Por outro lado, temos também um entendimento crescente do brasileiro como latino, que antes não existia, e estamos absorvendo cada vez mais a cultura asiática, com o aumento do consumo de k-pop, dos doramas e até de novelas verticais. Então, acho que a gente vai construir essa diversidade cultural e esse regionalismo desse jeito, exportando para além dos estereótipos brasileiros, mas também absorvendo novas culturas latino-americanas, asiáticas etc.
M&M — O estudo também aponta um movimento de aproximar as novas gerações da religiosidade e do resgate de modelos tradicionais, inclusive de gênero. Como esse conservadorismo se manifesta?
Karen — Novamente, vivemos uma contradição. De um lado, cresce a adesão a religiões de matriz africana, a autonomia feminina e a diversidade de modelos familiares, algo que aparece em pesquisas como a da Globo, em que 90% dizem que família é definida pelo amor. Surgem mães e pais influencers, famílias neuroatípicas e mulheres com escolhas mais conscientes, sejam para caminhos progressistas ou conservadores. De outro lado, há um movimento contrário: a explosão do interesse por magreza, buscas por canetas emagrecedoras, que já superaram a dipirona, e a adesão de algumas mulheres a modelos tradicionais, como as “tradwives”. Isso levanta a dúvida: estamos vendo um retrocesso ou apenas novas formas de escolher?
No fim, convivem duas forças: mulheres que optam por uma vida mais tradicional e, ao mesmo tempo, uma maior abertura para novos arranjos, linguagens e formas de existir, quebrando padrões de família e relações.
M&M — De que forma a espiritualidade, que se manifesta desde o neopentecostalismo de estética jovem até o crescimento dos adeptos de religiões de matriz africana, atua como um mecanismo de resiliência e apoio em tempos de instabilidade socioeconômica e ambiental?
Karen — Durante muito tempo, o Brasil acreditou que sua abundância natural o blindava de riscos ambientais. Mas isso mudou: a preocupação cresceu, especialmente entre os jovens: 61% dos brasileiros acreditam que terão que se mudar devido às mudanças climáticas nos próximos anos, de acordo com a Ipsos. Hoje, entendemos que não basta preservar, é preciso regenerar. Os impactos climáticos já estão aqui, atingindo sobretudo as populações mais vulneráveis, como mulheres negras. Queimadas no Cerrado, enchentes no Sul e o debate sobre petróleo na Foz do Amazonas alimentam essa ecoansiedade. Nesse cenário, fica mais difícil construir narrativas de sustentabilidade nas organizações, ainda mais quando vemos empresas globais desacelerando compromissos em diversidade e clima. Talvez as marcas precisem ser menos “ecochatas” e mais “eco-trends”: comunicar de forma mais lúdica, estética e aspiracional, e menos baseada em culpa.
Alguns exemplos já apontam esse caminho: como o Spin da Heineken, uma unidade de negócio focada em sustentabilidade; iniciativas como Green Your City; e marcas como a Na Veia, que conectam sustentabilidade a lifestyle. Festivais como o Global Citizen em Belém e o Amazônia Live mostram como o entretenimento pode ampliar linguagem, engajamento e novas narrativas, sem recorrer à fragilização.
M&M – Vemos também a ascensão das bets, da busca por dinheiro fácil, notícias falsas e conteúdos digitais que, muitas vezes, não estão comprometidos com a verdade. Como as marcas podem navegar neste contexto para educar as pessoas e gerar confiança?
Karen — Se a organização não tem clareza e coerência internas, não consegue ser legítima nem consistente externamente. Tudo começa “da porta para dentro”. A coerência que chega ao público depende da liderança, da cultura e de como isso se traduz em jornadas, ações e iniciativas, não apenas do desejo de atrair jovens, gerar receita ou ganhar reputação. Quando perguntamos qual é o papel das marcas, muitos esperam que elas eduquem. Mas o tipo de educação possível depende do posicionamento de cada uma. O avanço das bets, por exemplo, exigiria uma regulação muito mais forte, especialmente diante do impacto na saúde mental e da vulnerabilidade da população brasileira, muitas vezes seduzida pelo dinheiro fácil. Surge aí a contradição: cobramos que empresas eduquem, mas essa educação é limitada pelo lugar que ocupam. E cabe ao governo garantir amparo para que a população não fique exposta a riscos extremos.
M&M — Tem ocorrido movimentos de mulheres em torno do “heteropessimismo” e até das que se recusam a casar. Como as brasileiras estão encarando os relacionamentos?
Karen — As mulheres estão cada vez mais conscientes. Acho que nós estamos conseguindo nos amparar mais à medida que dividimos nossa vida e nossos problemas com outras mulheres. Elas estão mais conscientes disso tudo, inclusive nos relacionamentos. Estão se posicionando como mulheres que não querem e entendem que não vão ficar subjugadas a um relacionamento. Reconhecem que esse modelo tradicional de casar e ter filhos talvez não seja para elas e conseguem se posicionar hoje com mais segurança.
No entanto, você também tem mulheres no caminho de uma linha mais tradicional. E homens também, como o exemplo dos Legendários, que querem entender o que é masculinidade para se reafirmar como homens. Eles desejam reafirmar o padrão heteronormativo, que acham que está se perdendo ou sendo questionado. Isso aparece principalmente nas altas lideranças. Quando alguém posta uma foto só de homens, todo mundo cai em cima perguntando “cadê a diversidade?”, “vocês não estão se preocupando com isso?”, “o que vocês estão vendendo para mim?”. Não está consistente, não é coerente.
Apesar de empresas americanas, e ouso dizer multinacionais, terem com frequência um movimento de antidiversidade e antissustentabilidade, aqui no Brasil, até por ser ano de COP e pela ajuda do terceiro setor, senti que essa desaceleração foi menor. Então, acho que existe uma adequação dessas marcas para se conectar com o público na hora certa, no momento certo, sem deixar de serem autênticas.
M&M — O estudo também aponta um movimento de valorização das amizades, principalmente femininas, ao mesmo tempo em que o debate sobre a epidemia da solidão e saúde social se aqueceu. Como as marcas podem aproveitar essa oportunidade?
Karen — Países como o Japão já mostram índices altos de solidão, e no Brasil isso também aparece, apesar da imagem de um povo alegre e relacional. O uso de redes sociais cresce sem parar, mas produz uma conexão frágil: muitos likes e seguidores, porém interações passivas e unilaterais. Algoritmos que mostram menos amigos e mais conteúdo comercial, somados à falta de regulação, reforçam esse sentimento de isolamento. Para as marcas, o desafio é agir com coerência. Só faz sentido entrar nesse debate se houver histórico, cultura interna e legitimidade. Quando isso existe, elas podem se aproximar por caminhos que vão do entretenimento às conversas sobre sustentabilidade e relações humanas, usando memes, iniciativas internas, festivais e ações fora das redes. Parcerias, como as feitas pela Na Veia, também ajudam a romper bolhas, gerar trocas e construir conexões mais reais.
M&M — Outro movimento apontado pelo estudo é o da performance disfarçada de autocuidado, que reforça os mesmos padrões estéticos de sempre, e está impactando até crianças. Qual a responsabilidade das marcas neste contexto, pensando principalmente em como isso impacta as mulheres?
Karen — As pessoas esperam que marcas atuem como educadoras, e isso traz uma grande responsabilidade. Quando as empresas entendem esse papel, o diálogo com a sociedade ganha profundidade e vai além da venda. Exemplos como O Boticário, ao alertar que certos produtos são para adultos, mostram que a marca reconhece problemas que não criou, mas dos quais faz parte e busca iluminá-los com legitimidade. A Nestlé fez isso no passado ao adotar tabelas claras de açúcar e sódio, trazendo transparência e estimulando inovação. As marcas precisam crescer, mas podem fazê-lo de forma mais sustentável, sendo relevantes para o público e contribuindo para questões reais. Podem ser protagonistas de avanços, mesmo sem resolver tudo.
Isso é evidente no debate sobre redes sociais e adolescentes, especialmente meninas: o aumento do uso de cosméticos, o retorno da busca pela magreza e os impactos na autoimagem mostram como ainda reforçamos padrões nocivos. Bem-estar não é adequação ao padrão, mas entendimento de si e discursos agressivos das marcas podem minar conquistas recentes, como o avanço do body positive, ao alimentar retrocessos impulsionados pelas redes.
M&M — Quer deixar um recado final?
Karen — As gerações mais velhas também dizem não se sentir representadas. A silver economy cresce em um país vulnerável, com pouca infraestrutura e saúde, e inclui especialmente mulheres, historicamente protagonistas do consumo, que hoje veem as marcas falando quase só com os mais jovens. E elas perguntam: “e eu?”. Em breve, serão maioria. Isso abre uma grande oportunidade. Relevância não é ser a única marca escolhida, mas ser a marca em que se confia. Quando as pessoas dizem que esperam que marcas eduquem, estão pedindo autenticidade, propriedade para falar sua língua e oferecer soluções compatíveis com suas necessidades. Esse movimento cria espaço enorme para inovação em linguagem, posicionamento e produtos.