Opinião WW

O futuro depende das virtudes que deixamos para trás

Não há como viver um dos anos mais duros para as mulheres e não repensar profundamente o tipo de sociedade que estamos ajudando a construir

Maria Laura Nicotero

CEO da Nico.ag e presidente da plataforma Women To Watch 19 de dezembro de 2025 - 8h39

(Crédito: Shutterstock)

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Quando entrevisto pessoas para integrar o time da Nico, minha atenção se volta menos para o currículo e mais para aquilo que não aparece no papel. Não é um critério novo na minha vida. Sempre olhei para as pessoas dessa forma. Mas talvez, diante do mundo que temos hoje, isso se torne ainda mais fundamental.

O que busco numa entrevista não é apenas experiência, fluência técnica ou histórico corporativo. O que realmente me diz quem aquela pessoa é surge no modo como ela escuta, na forma como trata o outro, na qualidade da presença que oferece. É nesses detalhes silenciosos que reconheço caráter.

Repito frequentemente que a parte técnica se aprende. É moldável, treinável, acumulável. O que não se ensina é aquilo que vem da alma: o respeito, a ética, a empatia, a colaboração genuína. Esses elementos, que já foram vistos como traços de uma personalidade cuidadosa ou até como delicadezas de um tempo antigo, hoje se revelam como competências centrais para qualquer futuro que valha a pena. E isso não tem nada de ingênuo. Pelo contrário: é o alicerce mais concreto que conheço.

Chegamos ao fim de um dos anos mais duros para as mulheres brasileiras. Os feminicídios cresceram, as manchetes nos atravessaram como feridas abertas, e muitas de nós terminamos 2025 exaustas. São números que não podem ser ignorados: apenas na cidade de São Paulo, mais de cinquenta mulheres foram assassinadas por quem dizia amá-las. No país e no mundo, a tendência se repetiu. Não existe como viver um ano assim e não repensar profundamente o tipo de sociedade que estamos ajudando a construir.

Hannah Arendt escreveu que o mundo comum só existe quando reconhecemos o outro e assumimos responsabilidade por aquilo que nossas ações produzem em comunidade. Para ela, humanidade é escolha, e não instinto. É pacto. E esse pacto, no nosso tempo, está frágil. Violências como essas não surgem do nada, são consequências de uma erosão lenta de valores fundamentais. Quando o respeito desaparece, tudo desaba em seguida.

Ao longo da minha carreira, aprendi que liderar é exercer influência sobre a vida alheia. É, inevitavelmente, um ato moral. As pessoas que escolhemos para trabalhar conosco moldam a cultura que criamos, os ambientes que sustentamos, as oportunidades que compartilhamos. Por isso considero tão sério o momento de uma entrevista. Não porque se decide uma contratação, mas porque se reafirma o tipo de futuro que queremos construir no nosso pequeno pedaço do mundo.

bell hooks, em uma reflexão que sempre me acompanhou, diz que o amor — entendido como ética, responsabilidade, respeito e compromisso — é uma prática cotidiana capaz de desmontar as estruturas de dominação. Não o amor romântico, mas o amor como forma de vida. Como modo de estar no mundo. Como escolha radical de cuidar. Sempre me tocou a clareza com que ela descreve algo tão simples e tão urgente: sociedades mudam quando substituem a lógica do controle pela lógica do cuidado. Essa mudança, embora pareça pequena, é revolucionária.

Quando penso no que chamamos hoje de soft skills, vejo que estamos apenas dando um nome moderno ao que sempre foi essencial. Respeito, generosidade, empatia, colaboração. Virtudes antigas, algumas até ridicularizadas ao longo das últimas décadas por parecerem frágeis demais diante de ambientes ultracompetitivos. Mas é justamente nelas que encontro a força que sustenta equipes, famílias, comunidades e sociedades inteiras. São elas que permitem que o mundo não desabe de vez.

Talvez seja isso que este ano me ensinou com mais intensidade: o futuro não será construído apenas por quem domina ferramentas, estratégias, linguagens e tecnologias. Ele será construído por quem souber preservar o que nos torna humanos. Por quem entender que a verdadeira inteligência de um time aparece na sua capacidade de cuidar, e não apenas de performar. Por quem tiver coragem de colocar respeito, ética e empatia no centro da vida, mesmo quando o ambiente pareça pressionar na direção contrária.

Às vezes me pergunto como seria o país se essas virtudes guiassem mais decisões. Se cuidássemos mais uns dos outros. Se o respeito fosse regra, e não exceção. Se a delicadeza, essa palavra tão subestimada, fosse vista como competência, e não como fraqueza. E me pergunto especialmente como seria o mundo para as mulheres.

Fecho o ano acreditando que o amanhã depende das virtudes que deixamos para trás, não porque elas pertençam ao passado, mas porque são as únicas capazes de sustentar o futuro. Não há tecnologia que substitua caráter. Não há processo que compense a falta de empatia. Não há liderança que sobreviva ao desrespeito.

Que 2026 seja o ano em que recuperemos, com coragem e sem constrangimento, aquilo que sempre soubemos no fundo do coração: ética, cuidado e respeito não são delicadezas. São estruturas, são força. São futuro.