Quando entenderemos que há diferentes opções para a pergunta “quem paga a conta”?

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Opinião

Quando entenderemos que há diferentes opções para a pergunta “quem paga a conta”?

Ao pedir a conta em bares e restaurantes, notei que na maioria das vezes elas iam de fato a mãos masculinas. Inicialmente quis acreditar que eram apenas coincidências, para depois atestar que ia além disso


10 de outubro de 2022 - 9h28

(Crédito: nimito/Shutterstock)

Recentemente saímos de férias, meu marido e eu. Fazia tempo que não viajávamos pelo nosso país e apenas os dois. Logo no início da viagem, partindo já daqui de São Paulo, no aeroporto, em uma situação no check-in, o atendente demorou para encontrar um pedido extra de nossa reserva, e só o fez corretamente quando a localizou em meu nome. Passamos pela mesma situação no hotel. Em ambos os casos, os comentários foram: estava buscando a reserva no nome do seu marido, mas já achei no seu. Fato que naturalmente nos passava despercebido, e sempre com a sensação, de: foi coincidência.

Durante a viagem, por estarmos sempre nós dois, fizemos absolutamente todas as refeições juntos. Ao longo da semana, algo começou a despertar a minha atenção. Ao final das refeições, praticamente todas as contas eram entregues na mão dele. Lembro de apenas uma que ficou sobre a mesa. Fiz o comentário entre nós. A conclusão no momento foi que como geralmente quem pedia era ele, a conta também ia para a mão dele. Tinha comigo que eu também solicitava as contas, mas mais uma vez ficou a sensação de: foi coincidência.

Nas últimas semanas, já em São Paulo, resolvi testar de maneira empírica este modelo, e trazia para mim a responsabilidade de pedir a conta sempre que estivessem outros homens na mesa. Concluí que o fato de pedir a conta aumentava a probabilidade de que fosse direcionada para minha mão, mas não era determinante. As contas seguiam indo, na maioria das vezes, para mãos masculinas. Desta vez, ficou a sensação de que era mais que coincidência. Parecia, de fato, um hábito e um comportamento pré-estabelecido.

O relato que eu faço não é nenhum amplo e extenso estudo quantitativo ou qualitativo, mas sim uma vivência pessoal que, pelo menos para mim, permite algumas reflexões importantes. A primeira delas é porque, tanto meu marido como eu, que nos colocamos a todo tempo como “defensores” e até ativistas na questão da autonomia feminina e paridade de gênero, tivemos uma primeira reação de acreditar que é apenas uma “coincidência”. Por outro lado, quantas outras vezes eu também tive a oportunidade de pedir a conta, e deixei meu marido fazê-lo, porque este é o “modus operandi”. E, assim, passei a refletir em quantas outras situações não fizemos o mesmo também e normalizamos o ocorrido.

A simples e imediata normalização das situações do dia a dia nos fazem esquecer as razões e os fundamentos do que chamamos de comportamentos estruturais. Durante a nossa rotina, não racionalizamos a todo tempo os porquês de cada acontecimento e fato. Seguramente, nas diferentes vezes em que eu vi a conta indo para a mão do meu companheiro, não parei para pensar que aquele ato era reflexo de uma sociedade que ainda acredita no homem como o principal e quase único provedor financeiro em seus relacionamentos e suas famílias – diferentemente até dos dados que visualizamos em estudos de mercado, nos quais, entre os chefes de família, 60% se declaram homens e 40% mulheres (Target Group Index). Consequentemente, se esta evolução ainda não é a percepção comum e padrão, facilmente explicamos que quem pede, quem recebe e quem paga a conta será o homem.

Como o exemplo que dou acima, estudamos, discutimos e já comprovamos, tantas vezes, que comportamentos como machismo são estruturais e carregam claros vieses inconscientes. Porém, quando bate à nossa porta e fica à nossa vista, buscamos desculpas para atenuá-lo. A nossa vontade de superar este ponto é tão legítima e fundamental, então, quando passa pela gente, somos atropelados pelo nosso otimismo e nos iludimos sobre o quanto de fato já o superamos.

Não tenho dúvida de que, aos poucos, evoluímos. Estamos em outro estágio de maturidade sobre o assunto. Seguramente, há alguns anos eu não estaria aqui me incomodando ou relatando o tema. Eu mesmo o trataria como natural, estaria conformada com este status quo e pouco acharia que era importante e possível mudá-lo.

Cada vez mais, tenho acreditado que esta consciência e autocrítica se tornam fundamentais para que, todos os dias, nos lembremos que a pauta não pode sair da agenda e atuemos para influenciá-la com questionamentos, mudando procedimentos, trazendo exemplos e temas para discussão.

O mais relevante sobre o tema aqui não é quem recebe ou paga a conta, mas construir um comportamento coletivo de se questionar e aceitar que entre um casal, ou em roda de amigos entre homens e mulheres, existem múltiplas opções para quem vai receber e ou quem vai pagar a conta.

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