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Opinião

O melhor momento para voar em direção ao outro mundo

É hora de exalar confiança, de se preparar para o futuro. A pandemia está formando um novo mercado, sim. Mas não sairemos todos lindos do outro lado. Será duríssimo


26 de maio de 2020 - 12h27

(Crédito: Marcos Medeiros)

“Que enganem os médicos e os enfermeiros pelas costas, mas para que mentir para o povo? Para que persuadir o povo de que sua ignorância tem razão de ser e de que seus preconceitos grosseiros são uma verdade sagrada? Será que o futuro maravilhoso pode redimir essa falsidade infame? Se eu fosse político, jamais tomaria a decisão de desonrar o meu presente em nome do futuro, mesmo que me prometessem duas toneladas de felicidade em troca de dois gramas de mentiras torpes.”

Durante esta quarentena infindável e necessária, esse foi um dos trechos de leitura que mais me chamaram a atenção. Ele parece ter sido escrito nos dias de hoje. Há uma data, porém, bem específica: 1º de agosto de 1892. O trecho faz parte de uma carta do escritor e médico Anton Tchekhov para o seu editor Suvórin. No momento da carta, a Rússia está tomada por uma violenta epidemia de cólera. Isolamento, medo, pessoas morrendo, falta de informação, disputas políticas, remédios e tratamentos sendo testados. Alguma semelhança?

Não é preciso traçar linhas óbvias entre esse pequeno trecho e o momento que nos cerca. Não seria tarefa simples encarar uma pandemia, assim como a que se apresenta, mesmo se todas as condições externas fossem favoráveis. Não são. A pandemia encontrou no Brasil um desgoverno que será estudado futuramente graças a um conjunto de ações e pensamentos estapafúrdios, incluindo frases que tratam a vida humana como se nada fosse. E isso torna todo o cenário ainda mais sufocante, ao menos para mim.

Aqui, mudo o rumo para não adoecer a alma. Mais cedo, o Marcão, meu irmão, mandou a ilustração para este artigo que ainda nem tinha sido escrito. Disse a ele que pensei em escrever uma correspondência com destino à sanidade. E mandei um trecho da mesma carta do Tchekhov, com as palavras nas quais me abraço nesta hora:

“Escreva-me com a maior frequência possível, em vista da minha situação de isolamento. Meu humor nas circunstâncias pode não ser bom, mas as suas cartas vão me distrair das preocupações da cólera e, por um breve tempo, me levarão para um outro mundo”.

Em troca, recebi um pombo-correio feito de folha de caderno. No bico do pássaro, um selo. No selo, o desenho de um balão, que simboliza respeitar as condições de tempo. Esperar o melhor momento para voar em direção ao outro mundo. Assim tenho feito quase diariamente.

Eu e o meu amigo Erick Rosa começamos a trocar correspondências em um projeto que chamamos “Dois Fusos”. Ele lá em Tóquio, eu cá em São Paulo. Não falamos de propaganda nas cartas, trocamos histórias. Muitas delas nunca contadas, fazemos um escambo de confidências, do olhar do outro. Ver o mundo através das palavras do Erick me acalma. Já o ato de escrever para ele me desafoga. Tal qual o algoritmo do Spotify tem confirmado, estamos buscando uma nostalgia confortável. Uma música de um lugar em que sabíamos estar seguros. Falo em desafogar porque sinto que a impotência diante do invisível tem me jogado, por vezes, entre séries de ondas gigantescas de fatos, notícias, dados, dissabores. O corpo e a cabeça a girar, sem saber qual é a direção certa para a superfície. Então, quando a encontro, puxo o ar para o dia seguinte, para o próximo momento.

Eu sei, é estranho. É hora de exalar confiança, de se preparar para o futuro. Queixo para cima. Há momentos em que faço isso tudo. Falo aqui dos sentimentos menos exibidos: medo, ansiedade, tensão. Há dias em que estou profundamente assustado, olhando números, dormindo inquietamente. A pandemia está formando um novo mercado, sim. Mas não sairemos todos lindos do outro lado. Será duríssimo. Na terapia, tento me preparar mentalmente para tempos longos, sabendo que será inevitável passar por lugares pantanosos.

Então, escrevo para encontrar o menino que lia Tistu, escrevo sonhando com o Brasil de Moraes Moreira. Penso no dia em que será possível cantar novamente: “Acabou chorar e, ficou tudo lindo, de manhã cedinho”. Ou apenas pedir para iluminar os terreiros para que a gente possa sambar. Redijo com todo respeito a Aldir Blanc, o homem que fazia das canções roteiros de filmes. O mais carioca dos cariocas, o sábio dos subúrbios, o criador de tantas criaturas, entre elas o menino do corpo fechado: “Ídolo de poeira, marafo e farelo. Um deus de bermuda e pé-de-chinelo. Imperador dos morros, reizinho nagô. O corpo fechado por babalaôs.”

Escrevo para a criança dentro de você, leitor, que é a parte mais criativa que o habita. Escrevo com um pouco de inocência porque, de brutalidade, o mundo está repleto. Vamos precisar acreditar que tudo pode mudar para um lugar melhor. E isso é um exercício pleno de inocência.

Tenho Tchekhov como meu escritor favorito pela observação aguçada, pela capacidade de concisão, por fazer um retrato humano e atemporal. Reforço a palavra atemporal. Estamos passando por profundas transformações no uso da tecnologia, na maneira com a qual lidamos com o entretenimento. Não há freio nem desejo capaz de parar esse movimento. Não creio, no entanto, em uma grande mudança da condição humana. Somos os mesmos do teatro grego, dos romances shakespearianos, das crônicas de Nelson Rodrigues. O que muda é o fator externo. Sempre haverá avareza, descaso, oportunismo, burrice convicta.

E sempre haverá pessoas que valem a pena e seus vínculos humanos genuínos, elementos fundamentais para a felicidade. Os vínculos que já existiam antes da pandemia serão reforçados e valorizados. Porque, afinal, mesmo com todo aparato tecnológico, sentimos falta dessas pessoas.

Que o reencontro seja como uma carta saudosa, repleta de carinho estocado. Um abraço!

*Crédito da foto no topo: Storm Clouds/ Pixabay

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