A queda

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Opinião

A queda

A ilusão de que “o pior já passou” e a pressa para voltar ao “conforto” se combinam com um cenário que envolve o lusco-fusco do anoitecer, a força da gravidade e rápidas mudanças nas condições climáticas


21 de julho de 2020 - 14h00

Não confunda o “liberou geral” que está tomando conta da política e sociedade brasileiras com a situação do mercado nos próximos meses. A “descida” do pico das infecções mal começou, se é que já chegamos no pico. E eventuais movimentos de melhora nos indicadores financeiros e de consumo demoram um bom tempo para se traduzir no investimento publicitário (entre outros motivos, pelo enorme volume dos estoques, capacidade ociosa na indústria e aumento da propensão para a poupança preventiva entre os consumidores).

 

Por maior que seja sua pressa em voltar para o “Campo Base”, não acelere demais o passo (Crédito: Jackman Chiu/Unsplash)

Até meus trinta e poucos anos pratiquei escalada em rocha com uma frequência razoável. A idade trouxe perda de elasticidade e dor nas articulações, me levando para o mundo dos trekkings em alta altitude. Entre idas, vindas e alguns sustos no Campo Base do Everest (três vezes), Annapurna (duas), tentativas frustradas ao topo do Aconcágua
(duas, voltando com menos de 200 metros para o cume) e alguns vulcões e montanhas menores pelos Andes, constatei de perto o que boa parte das histórias sobre as grandes montanhas mostram: a descida é o momento mais perigoso da expedição. A exaustão física, mental, o excesso de confiança por ter atingido o objetivo (ou o peso da frustração por não ter conseguido), a ilusão de que “o pior já passou” e a pressa para voltar ao “conforto” da barraca se combinam com um cenário que frequentemente envolve o lusco-fusco do anoitecer, a força da gravidade e rápidas mudanças nas condições climáticas.

Existe uma semelhança razoável entre essa situação, o momento de incerteza que vivemos e os vieses que diminuem a eficiência dos processos decisórios nas organizações (o Philip Tetlock, um dos principais nomes da economia comportamental, escreveu sobre o assunto no excelente Superforecasting: The Art and Science of Prediction). Nas condições atuais, diversas empresas podem estar tomando decisões com base em mecanismos de interpretação e métricas que não funcionam corretamente.

Um exemplo está no mercado financeiro e nas projeções de retomada do consumo. No primeiro caso, é evidente que a injeção de recursos feita pelos Bancos Centrais desarranjou todo o sistema de preços relativos dos ativos com a economia “real”. Não ache que o “boom” de abertura de capital que estamos prestes a assistir na Bolsa é sinal que
algo está melhorando nas gôndolas dos supermercados ou no bolso dos consumidores os produtos de seus clientes. Ele é explicado em boa parte pela queda dos juros combinada com a expectativa de aumento da inflação depois que o pior passar (lá por 2022, 2023). Os investidores estão simplesmente tomando posição em ativos reais. Isso não vai impactar o investimento em publicidade.

Mesmo dentro do ecossistema digital o impacto da crise vai gerar diferentes rotas para os diversos setores. A pandemia acentuou conflitos sociais latentes e a necessidade das empresas se posicionarem frente aos mesmos, inclusive com cobranças por parte dos anunciantes.

Em relação ao retorno do consumo, o maior equívoco está na interpretação que a “recuperação” será linear em termos do poder de compra e vendas. Meu palpite é que ela deve ser em um formato de “K”, no qual os segmentos de maior renda vão se recuperar mais rapidamente que os de baixa renda, assim que o Estado chegar no limite da sua capacidade de financiar auxílios de emergência (um volume não desprezível de recursos, que no caso brasileiro já chegou a 1,8% do PIB). O mesmo vale no B2B: as empresas melhor capitalizadas e mais eficientes vão engolir as que já vinham mal, e até apresentar um aumento nas suas receitas. No caso chinês, por exemplo, a Tencent, dona do WeChat e de uma infinidade de operações digitais, reportou crescimento de 32% (base anual) nas suas receitas
de publicidade do primeiro trimestre (o pico da pandemia naquele país), com a receita de assinaturas de conteúdo digital (música mais vídeo) aumentando 19% no mesmo período de comparação.

Em outros segmentos, a descida pode se tornar bem mais íngreme do que parece, principalmente pelo fato que a pandemia “angulou” o caminho. Por exemplo, a trajetória do consumo de horas de PayTV nos EUA em geral era uma “ladeira” de -24% ao longo da década, mas em algumas faixas etárias ela virava uma “pirambeira” de 62% negativos (entre o grupo de 18-24 anos). Embora os dados preliminares mostrem uma pequena recuperação no período inicial da quarentena naquele país, a queda deve se tornar ainda mais abrupta daqui por diante, também no Brasil, por conta de tudo que o leitor do Meio & Mensagem vem acompanhando sobre o aumento do consumo dos meios digitais, principalmente streaming.

Mas mesmo dentro do ecossistema digital o impacto da crise vai gerar diferentes rotas para os diversos setores. A pandemia acentuou conflitos sociais latentes e a necessidade das empresas se posicionarem frente aos mesmos, inclusive com cobranças por parte dos anunciantes, como vimos nas últimas semanas. Isso vai levar a um maior controle sobre a aplicação das verbas, principalmente nas cadeias de distribuição “opacas”, como a mídia programática. A Associação Britânica de Anunciantes, em parceria com a PwC, divulgou recentemente um estudo com 15 marcas, no qual analisou mais de mil cadeias de fornecimento de mídia programática e chegou à conclusão que do total investido, apenas 51% ficam com os veículos, e um “delta desconhecido”, de cerca de 15% do investimento evaporou ao longo do processo. A Covid simplesmente antecipou uma pressão que já vinha aumentando no segmento.

Não é possível ainda desenhar um mapa de como será a retomada dos negócios na publicidade ao longo dos próximos meses. Tudo o que é possível é interpretar sinais, inclusive de outros países, e tentar aproximações com
a realidade brasileira. Tenho feito isso cruzando, por exemplo, dados do investimento versus consumo em diversos estados dos EUA, utilizando sites como o tracktherecovery.org, uma iniciativa da Universidade Harvard e da
Fundação Gates, e fazendo paralelos com a realidade de alguns estados brasileiros. Isso chamou minha atenção, entre outras coisas, para o fato de que o aumento da renda do consumidor não vai se traduzir necessariamente em um aumento do consumo (um indicador que apresentava alta correlação em tempos “normais”), que no fim do dia é o que impacta a decisão de investimento em publicidade.

Por maior que seja sua pressa em voltar para o “Campo Base”, não acelere demais o passo. Até porque ele será bem diferente do que era antes. Mas este é tema para outro momento: ainda temos que cobrir uma boa distância até chegar lá.

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