Ensinamentos de um cão velho

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Opinião

Ensinamentos de um cão velho

Fosse um humano, o Pulga estaria a cantar na janela com voz esganiçada ou a abraçar cada um em casa, sabendo que é melhor pecar pelo excesso do que pela ausência de carinho


15 de setembro de 2020 - 12h26

(Ilustração: Marcos Medeiros)

O meu cão deita sob a luz do sol sempre que o sol se faz possível. Ele parece saber o momento certo de caminhar até a varanda e soltar o corpo como quem ouve Caymmi à tarde, na praia, vento no coqueiro imaginário. O suspiro de descanso cruza a casa. O ronco se faz ouvir. De todos nós, ele é o ser mais sábio da quarentena porque vive cada momento como se fosse eterno. Não satisfeito, ele faz questão de exibir uma ausência de pressa e se espreguiça longamente, como quem faz do ato uma lição do professor de Sociedade dos Poetas Mortos. Ele é o John Keating do lar, personagem de Robin Williams, a nos relembrar aquela tatuagem dos anos 1990: carpe diem. Ele será meu ponto de reflexão.

Nas atuais circunstâncias, eu jamais deveria ter lido A Peste, de Albert Camus, mas li porque me foi irresistível. A verdade humana que exala das páginas chega ao presente com uma atualidade premonitória e me leva a refletir sobre a triste capacidade que o ser humano tem de repetir os mesmos erros. Apesar de escrito em 1947, o romance soa como um estudo preciso sobre os dias de hoje. Um dos personagens, em dado momento, diz: “O que é verdade em relação aos males deste mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste.” Não farei grandes ilações, mas basta adicionar um “e daí?” para sabermos de quem o personagem estaria falando por agora.

Volto ao cão da casa, agora com o seu devido nome: Pulga. Um senhor de 13 anos de idade, que tem a coluna cansada e uma audição que capta apenas aquilo que lhe importa: o toque do interfone, o barulho da faca a cortar o pão francês, o abrir da porta do quarto, a ração que ressoa no pote. Sua audição seletiva, que lhe dava ares de felino, foi se aprimorando com o passar do tempo. Invejo essa capacidade porque ouço demais — e porque convivo, neste momento, com uma obra cujo um dos maquinários parece uma bruxa a uivar pela manhã. Sinto que, se eu quisesse conversar com ele sobre A Peste, só depois de muita insistência, receberia uma resposta neste estilo: “É, as coisas se repetem, sei como é. Corta um pão francês quentinho que eu chego logo mais”. Simplificaria tudo.

Em recente entrevista, o filósofo Mario Sergio Cortella deu mais uma aula. Não é o tipo de coisas que gostamos de ler, porém, se faz necessário. “(…) quando se olha a humanidade ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, nos redime. As lições são aprendidas por uma parte, mas há uma outra parte que só quer voltar ao normal”.

Ressalto o Cortella porque, como seres humanos, tendemos a evitar a dor (como a de refletir sobre nós mesmos) e muitas vezes negamos os sinais que vão contra as nossas crenças. Deveríamos caminhar todos para tirar alguma boa lição dessa experiência, mas parece utopia ou sonho bom da quarentena. Em uma metáfora exagerada, penso no terraplanista convicto que estava prestes a fazer um cruzeiro para comprovar sua tese. Um cruzeiro que iria até a beira do mundo usando — veja você — um sistema GPS (pode pesquisar essa notícia na internet). Sem perceber, podemos ser “o terraplanista das nossas crenças” quando não as confrontamos.

O Pulga carrega as certezas que lhe cabem e, mesmo assim, são vãs. Ele anda um pouco esquecido e, por vezes, parece não saber exatamente onde está. Mas há um outro lado dessa vivência: ele quase se afogou na quarentena e não se traumatizou. Por esquecer, ele não remói as coisas. Meia hora após o susto, ele estava feliz porque era hora do jantar e podia tentar a sorte de cadeira em cadeira, na esperança de um naco de carne. Ele vive o presente, não faz grandes desenhos de futuro, esquece o que o machucou no passado. Uma lição um tanto complicada para reles humanos, ele deve pensar.

Anotei também uma frase do sociólogo francês Dominique Wolton, profundo estudioso da comunicação. Disse ele: “Por que nessa pandemia as pessoas foram para a janela cantar e se comunicar com outras pessoas? Porque queremos sempre encontrar alguém, abraçar alguém. É aquilo que defendo há 30 anos: a superioridade da comunicação humana sobre a técnica”. Abraço esse pensamento em um abraço possível nos dias de hoje. O empobrecimento das interações humanas é um dos traços da atualidade. Ganhamos no avanço tecnológico, perdemos na convivência com o outro.

Já o meu cão velho pensa diferente. Ele ganhou mais do que sempre teve. Mencionei a coluna cansada, mas, desde o começo da pandemia, ele parece não sentir mais dor. A movimentação dele pela casa ganhou contornos de um Benjamin Button: um idoso jovem a pedir para jogar o brinquedo, a dar pequenas corridas, a fugir da hora de escovar. Por estarmos todos juntos, ele está infinitamente mais feliz. A todo momento, há um carinho, uma fala, um encontro de corredor. Sumiram as dores, melhorou o humor. Bastou mais interação.

Outro detalhe que gosto muito nele (e nos cães, em geral) é a falta de pudor na hora de mostrar que sente saudades, que ama uma pessoa. Das poucas saídas de casa, todo retorno tem a trilha sonora de um uivo quase rosnado que ele faz. Esse som estranho, de um cão que não sabe latir, é conhecido por todos que ele ama. Fosse um humano, o Pulga estaria a cantar na janela com voz esganiçada ou a abraçar cada um em casa, sabendo que é melhor pecar pelo excesso do que pela ausência de carinho.

Enquanto escrevo, ele está deitado embaixo da mesa. Ele soltou um suspiro que é o som do seu corpo relaxando. Há nesse suspiro muito mais do que sou capaz de traduzir. Hoje fez sol, o vento bate no coqueiro imaginário e olho para ele como quem mira um sábio. Porque mal sabe ele que tudo sabe.

*Crédito da foto no topo: iStock

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