Setenta anos em sete

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Opinião

Setenta anos em sete

Mesmo com os avanços dos meios digitais, a experiência comercial preponderante na televisão é bastante parecida com a que vivemos há décadas


6 de outubro de 2020 - 13h41

(Crédito: Bakal/ iStock)

Nos próximos anos, a televisão brasileira pode mudar tanto quanto desde 1950, quando desembarcou no País. Afinal, uma das características das grandes crises é que elas aceleram processos históricos, como pontuou Yuval Harari ainda nos primeiros dias da chegada do coronavírus. Um dos processos que foi acelerado é o da fusão entre televisão e internet, tanto do ponto de vista de formatos e conteúdos quanto da sua importância social e econômica. Os dados referentes ao investimento publicitário do primeiro semestre no Brasil, divulgados pelo Cenp-Meios são uma amostra desta aceleração. Embora o investimento tenha caído fortemente em todos os meios, foram justamente a TV e a internet que menos sofreram em termos proporcionais. A fatia da internet passou de 20,2% do total (no primeiro semestre de 2019) para 22,4% e a TV aberta de 53,7% para 55% (idem).

Mas, mesmo com os avanços dos meios digitais, a experiência comercial preponderante na televisão é bastante parecida com a que vivemos há décadas. Um conteúdo que interrompe a experiência do consumidor, em “blocos” de 15 ou 30 segundos, ainda é o meio preferido pelas equipes comerciais dos veículos. Ao mesmo tempo, se encaixa em um sistema de avaliação de retorno de investimento adequado para um mundo no qual a principal preocupação das marcas era colocar seu produto diante de um grande volume de potenciais compradores definidos por critérios demográficos. Mas esse mundo está ficando cada vez menor e a pandemia acelerou seu encolhimento.

A explosão do consumo de streaming, do e-commerce e dos jogos online, verificada nos últimos meses, não apenas dirige a atenção dos consumidores para outros aparelhos, mas também muda a maneira como consomem o conteúdo desenvolvido originalmente para a televisão. Uma novela ou programa de auditório podem ser vistos de forma “fatiada”, conforme o serviço ou aparelho que o consumidor usa, e não quando é mais oportuno para o veículo ou o anunciante. Por exemplo, ele começa a assistir em um celular, para, e, quando retorna, uma hora, um dia ou uma semana depois, está em um computador ou tablet. Essa fragmentação é um pesadelo para institutos de pesquisa, agências e veículos, que não conseguem consolidar a audiência para os anunciantes.

Já do ponto de vista econômico, a redução no poder de compra da população vai afetar o faturamento das empresas e consequentemente aumentar a pressão sobre os diretores de marketing, ao mesmo tempo que leva as famílias a reavaliarem seus gastos com lazer — e aqui o risco é, principalmente, da TV por assinatura.

A combinação desses fatores vai deixar duas opções para os veículos tradicionais: inovação ou irrelevância. Isso não vai acontecer da noite para o dia, pelo fato de que, se estamos falando de algo que necessite de uma audiência realmente significativa, de forma simultânea, a TV aberta ainda é imbatível, mas, se antes imaginávamos que poderíamos ter mais uns vinte anos até chegar lá, acredito que esse tempo tenha caído para menos que a metade (sete anos, quem sabe?).

O problema não é somente de fragmentação do consumo de mídia, mas também que, exposto a novos formatos de publicidade, o consumidor se torna cada vez mais avesso à tradicional interrupção do conteúdo que ele deseja consumir por outro associado com um anunciante. Isso fica claro em um estudo feito pela Interpublic: cerca de 30% dos comerciais em televisão nos Estados Unidos são exibidos para uma sala vazia. A televisão tem um problema de “viewability” tão sério quanto o digital. Com a diferença que os volumes de dinheiro envolvido são muito maiores. Essa percepção é mais um fator que leva as marcas a buscar a criação de um conteúdo próprio independente do criado pelos veículos.

Curiosamente, esses mesmos problemas podem despertar um processo de inovação na maneira pela qual as grandes redes de TV comercializam a atenção despertada pelo seu conteúdo. Nos EUA, a Disney oferece aos anunciantes a possibilidade de exibir seus comerciais somente quando o consumidor aperta o botão de pausa na sua TV conectada, enquanto a NBC permite a compra de audiência por temas (eleições, esportes etc.) em diferentes plataformas (celular, computador, televisão), entregando um único número de “espectadores” para o anunciante.

Tão crucial quanto resolver a questão dos formatos, das métricas e de demonstrar o retorno do investimento para executivos financeiros cada vez mais nervosos, o desafio para os próximos anos é também sobreviver à polarização social, que se reflete tanto na política quanto nas justas críticas por maior diversidade de programas e conteúdo. Mas, como esta coluna é apenas sobre estratégia e tecnologia, está na hora de chamarmos nossos comerciais.

*Crédito da foto no topo: iStock

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