Rir é uma forma de resistência

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Opinião

Rir é uma forma de resistência

Umberto Eco dizia que nas manifestações culturais o que amedronta é o pensamento crítico, a divergência com os valores tradicionais


18 de maio de 2021 - 11h38

(Crédito: Marcos Medeiros, sócio e chief creative officer da CP+B Brasil
mmedeiros@cpbgroup.com)

No rosto, um par de óculos escuros e uma máscara com as cores da Portela. O semblante é aquele que está sempre a nos remeter para o recanto de um Brasil que vale a pena. Ele arregaça a manga da camiseta, a enfermeira se aproxima com a vacina, e ele faz uma careta com a picada. É tudo rápido e previsível como tinha de ser. Eu me emociono. O Zeca Pagodinho vacinado é a preservação de uma felicidade que teima em escapar.

A gente deveria ter um canal que transmitisse apenas as pessoas sendo vacinadas, disse uma arroba, no Twitter, da qual não me recordo o nome. O espaço da memória tem sido utilizado demais para o presente e as coisas se embaralham, me desculpem. Eu deixaria esse canal ligado todos os dias.

Chorei com a primeira enfermeira vacinada e com Caetano, porque gente é para brilhar, não para morrer de fome. Gil vacinado trouxe a paz que ele diz invadir o coração e que, de repente, se enche de paz como o vento de um tufão. Alcione é o morro feito de samba, e Rita Lee, que está viva e cheia de graça, faz um monte de gente feliz. Paulinho da Viola, o príncipe da cultura popular e legítimo representante de uma monarquia que vale a pena respeitar: a musical. Para cada um deles, um misto de felicidade pelos imunizados e um lamento pelos que se foram sem essa chance.

Não entendo o processo de demonização da cultura quando a análise é puramente emocional. Não faz sentido essa pecha que tentam emplacar de que artista é vagabundo, simplesmente não faz. Pela análise racional, entendo a castração desejada, infelizmente. Umberto Eco dizia que nas manifestações culturais o que amedronta é o pensamento crítico, a divergência com os valores tradicionais. O que me dá mais um motivo para continuar a amar a cultura e a lembrar de um professor que me disse que os poetas contam o que aconteceu no lado dos derrotados. Minha amiga Zélia Duncan escreveu um texto de que gosto muito e destaco uma parte:

“Você não precisa de artistas?

Então me devolve os momentos bons. Os versos roubados de nós.

As cores do seu caminho.

Arranca o rádio do seu carro.

Destrói a caixa de som.

Joga fora os instrumentos.

E todos aqueles quadros.

Deixa as paredes em branco.”

Os setores cultural e criativo respondem por 2,64% do PIB do Brasil. Poderia e pode ser muito mais. Em um artigo de Marlova Noleto, publicado no Valor Econômico, o retrato é drástico: “Entre os meses de março e abril de 2020, 41% dos respondentes perderam a totalidade de suas receitas e, entre maio e julho, essa proporção aumentou para 48,8%. A pesquisa mostra que as artes cênicas foram as mais afetadas, com a perda total de receita para 63% dos respondentes. Nesse setor, a maioria dos que atuam na área de circo (77%), em casas de espetáculo (73%) e no teatro (70%) perderam a totalidade de suas receitas entre maio e julho.”

Eu pergunto, então: Quanto da nossa sanidade mental está atrelada à existência de diferentes formas de entretenimento a que temos acesso na pandemia? Músicas na rádio, novelas, séries, livros, filmes, dança (sozinho, que seja), lives? A cultura salva ao nos tirar, por minutos que sejam, da realidade. É um efeito mágico.

Guardo músicas como quem guarda camadas profundas de histórias. Um coral de adolescentes cantando Arnaldo Antunes é uma memória lindíssima, apesar da letra triste. Porque eles, aqueles jovens, cantavam seus anseios de peito aberto:

“Socorro, não estou sentindo nada.
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir.

Socorro, alguma alma, mesmo que penada,
Me empreste suas penas.
Já não sinto amor nem dor,
Já não sinto nada.”

Guardo as canções dos Saltimbancos Trapalhões, do Roberto Carlos, da Marisa Monte e do Luiz Melodia como quem resguarda mananciais protegidos. Eu sei o que cada uma daquelas músicas me lembra, e isso é precioso demais.

Talvez eu não consiga mais escutar Beyoncé sem que a imagem feliz do Paulo Gustavo me arrebate. Era a paixão dele. A homenagem na página dela torna as coisas indissociáveis no meu modo de armazenar. A morte do Paulo foi um baque muito duro, em uma hora em que a gente mais precisava da leveza, do sorriso e da arte dele. Perguntei ao amigo Felipe Simi como um personagem como o Paulo Gustavo transcende todas as barreiras em um país como o nosso. Eis a resposta:  “Nós gays sempre fomos tratados no humor como objeto do riso alheio e majoritariamente de forma discriminatória. Paulo mudou isso. Eu conheci o trabalho dele quando ‘Minha mãe é uma peça’ ainda era mesmo uma peça. E achei genial ele usar o humor como veículo de fácil digestão para apresentar as dores e as delícias de sua sexualidade, na perspectiva da própria mãe. Ali era um homem gay, mas era também a alegoria da Dona Hermínia. E Dona Hermínia é a cara da mãe tradicional brasileira: cheia de sentimentos, cheia de erros e acertos, e também cheia de amor e preocupação pelo filho gay. Paulo Gustavo conseguiu transformar o que antes era objeto em sujeito. Um sujeito familiar, de quem qualquer um se sentia amigo. O Brasil talvez nem tenha percebido, mas nunca riu do Paulo. Nós (sempre) rimos (e choramos) com ele.”

Chorei pelo Paulo como se fosse esse amigo que eu queria perto, pensei na sua mãe e em tantos que precisavam do Paulo não só para sorrir ou para amar, mas também por ele ser um recanto do Brasil onde a gente poderia morar e ser feliz. Penso na partida dele como se o elástico dos absurdos não devesse esticar mais. E relembro uma canção que ouvi a minha filha cantar e que certamente poderia ser sobre ele:

“Não se assuste, pessoa,

Se eu lhe disser que a vida é boa

Enquanto eles se batem, dê um rolê e você vai ouvir

Apenas quem já dizia

Eu não tenho nada

Antes de você ser, eu sou,

Eu sou, eu sou o amor da cabeça aos pés.”

Porque fazer arte, cantar, amar e rir são formas de resistência.

*Crédito da foto no topo: Ajwad Creative/iStock

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