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Opinião

O direito moral ao crédito de autoria na publicidade

Caso de publicidade da Hellmann’s que foi à justiça pode ser oportunidade para que a justiça trace limites da aplicação do direito moral de autoria de forma harmônica a outros direitos e à própria atividade publicitária


9 de junho de 2022 - 6h00

Nos termos do artigo 47 da Lei de Direitos Autorais, há a dispensa específica da obrigação de autorização prévia para a utilização da obra parodiada (Crédito: Shutterstock)

No festival Rock in Rio de 2015, a Hellmann’s – marca alimentícia do grupo Unilever – fez uma ação publicitária de “real time marketing”, com interação ao vivo com o público por meio de filmes de animação que caricaturavam um “plantão de notícias” do festival de música, nos quais a abertura das chamadas reproduzia uma paródia vocal da célebre vinheta “Plantão da Globo”, de autoria do compositor João Maurício Nabuco.

A campanha publicitária extrapolou o festival, e versões dos filmes produzidos foram veiculados também nas redes sociais da marca, sempre se valendo da assinatura sonora, que é um símbolo indelével do inconsciente coletivo brasileiro, ao convocar nossa atenção para notícias urgentes e impactantes, a ponto de justificar a abrupta interrupção.

É exatamente esta a intenção da campanha publicitária: se valer de um produto cultural popular já maduro – um “ready-made” de Duchamp-Carrascoza -, como recurso técnico criativo de apropriação simbólica da mensagem original, emoldurando-a ao contexto da nova mensagem publicitária. Faz-se assim, uma comunicação mais próxima da memória do público e, logo, igualmente mais profunda e eficaz.

A despeito da fórmula criativa empregada na campanha da Hellmann’s, tão recorrente na publicidade em geral, o autor da vinheta “Plantão da Globo” ingressou com um processo judicial pleiteando da Unilever e da agência de publicidade CuboCC, a reparação dos eventuais danos materiais e morais decorrentes do uso não autorizado da composição musical.

Resumidamente, a discussão judicial se desenvolveu sobre duas questões centrais: a primeira analisa se o referido uso da obra musical se configuraria uma paródia e, neste caso, se deveria ser ou não expressamente autorizada pelo autor João Maurício Nabuco; a segunda questão trata sobre a ausência de indicação de autoria da vinheta musical nos filmes da campanha publicitária, o que em tese seria uma violação do direito moral do autor previsto no inciso II, do artigo 24 da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998).

O acórdão proferido pela 9ª Câmara de Direito Privado do TJSP, publicado recentemente no dia 03 de maio, mantendo o teor da decisão de primeira instância e do próprio laudo pericial constante nos autos, concluiu que a utilização da obra de João Nabuco configurou-se como paródia, uma vez preenchidos os requisitos de comicidade (intenção humorística), de distinção mínima entre a paródia e a obra original e da ausência de qualquer cunho depreciativo à obra ou ao seu autor.

Sendo paródia, nos termos do artigo 47 da Lei de Direitos Autorais, há a dispensa específica da obrigação de autorização prévia para a utilização da obra parodiada. Nesse sentido, a decisão do TJSP segue um entendimento habitual na jurisprudência sobre o tema, que reconhece que o impedimento de paródias, mesmo nos casos de peças publicitárias com clara finalidade comercial, se traduz no cerceamento da livre manifestação de ideias e censura do humor, com injustificada interdição da liberdade criativa.

A questão secundária, no entanto, se revela com nuances de extrema importância, mas que foram apenas rasamente analisadas ao longo do processo.

A condenação na sentença, em primeira instância, e a sua manutenção no acórdão, em segunda instância, fixada no valor de R$ 40 mil, a título de danos morais ao autor pela não indicação do seu nome nas peças publicitárias, é resultado de uma leitura fria do dispositivo legal, sem que houvesse a sua interpretação no contexto discutido.

É bem verdade que a lei prevê, como um dos direitos morais de autor, a indicação da autoria quando uma obra for utilizada. Nos casos de descumprimento, restaria configurada a violação de tal direito, com a necessidade de justa reparação do dano sofrido pelo autor. Até aqui, sem novidades.

Contudo, é sempre bom reforçar que nenhum direito previsto no ordenamento jurídico é absoluto, a ponto de se sobrepor indiscutivelmente em qualquer situação. Pensemos: seria mesmo adequado que houvesse sempre a indicação do nome do autor de uma trilha sonora de um filme publicitário?

No instinto, obviamente que a resposta é negativa. Não é nada adequado, como também não é adequado que houvesse (tal como não há) a remissão ao nome de João Maurício Nabuco nas chamadas do “Plantão da Globo” original da emissora de TV.

Em determinadas situações, há uma incompatibilidade entre a natureza da comunicação pretendida e a necessidade de identificação do autor, que é acentuada ainda mais nos casos das peças publicitárias. Uma exigência impositiva ao cumprimento dos direitos morais de autor, entre eles a indicação de autoria, poderia simplesmente desvirtuar toda a finalidade e os objetivos de uma mensagem publicitária, que mira, numa elaboração concisa e milimétrica, comunicar os valores, princípios ou ofertar características da marca, de seus produtos e serviços.

A intromissão de informações alheias a este roteiro rivaliza a atenção do conteúdo principal veiculado, prejudicando o objetivo maior pretendido na comunicação publicitária. Por outro lado, o mero cumprimento de indicação do nome do autor pelo simples ato de obediência, poderia resultar numa construção parca, que não dignificasse efetivamente o autor, seja pela aparição passageira, diminuta ou mesmo pela própria impertinência daquela informação ao público alvo da mensagem, que sumariamente a ignoraria.

No meu livro, “Direito de Autor e Publicidade”, defendo uma certa relativização dos direitos morais de autor quando tratamos de obras publicitárias. Como forma de sustentar tal posicionamento, cito a lei mexicana de direito autoral que prevê a presunção de autorização para a omissão do crédito dos autores que aportem suas obras em uma peça publicitária, ou ainda, a jurisprudência francesa, que já admitiu que a inserção de obras musicais na publicidade, se devidamente autorizadas, implicaria na dispensa do respectivo crédito autoral justamente pela natureza particular da comunicação publicitária.

É verdade que João Maurício Nabuco não autorizou expressamente a utilização de sua obra. Quem o fez foi o próprio sistema de proteção autoral, ao prever a paródia como uma das exceções à necessidade de autorização dos titulares do direito de uma obra intelectual.

Se é justo relaxar alguns enunciados legais diante um determinado contexto, é preciso também o cuidado ao ponderar a flexibilidade de aplicação dos direitos morais de autor na publicidade, já que, em outras situações, o exercício de tais direitos é plenamente conveniente e possível.

É o caso, por exemplo, da veiculação de uma campanha e suas peças na mídia especializada, que costumeiramente não só indica os criadores, mas tem o cuidado de apresentar uma longa ficha técnica. Ou também, em algumas peças de artes visuais e fotográficas, onde também é possível vislumbrar a indicação dos autores, sem que prejudique o teor central da mensagem publicitária.

Vale aqui uma análise caso a caso, guiada pelo bom senso e atenta à natureza específica das comunicações publicitárias, de forma a ser possível avaliar a pertinência e real efetividade da indicação do crédito autoral. No espectro jurisprudencial, todavia, há uma forte tendência favorável às condenações das (supostas) violações do direito moral de autor, sem que haja uma interpretação para além do dispositivo legal, que reflita também sobre o contexto e finalidades da mensagem.

A discussão do caso da Hellmann’s perante o STJ (Superior Tribunal de Justiça), se ocorrer (e provavelmente ocorrerá), será uma ótima oportunidade para que a justiça se debruce com mais tenacidade sobre o tema, a fim de legar um entendimento amplo que supere as lacunas de uma interpretação meramente gramatical, para traçar os limites da aplicação do direito moral de autor de forma harmônica a outros direitos e à própria atividade publicitária.

 

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