A quem pertence a criatividade?
O ato de criar não é uma exclusividade de poucos escolhidos, o que é exclusivo é a permissão de se enxergar como criativo, por marcadores de gênero, raça ou cargo

Criatividade não é uma exclusividade de poucos escolhidos (Crédito: Reprodução)
Acredito filosoficamente na criatividade que vem do prazer, da diversão e da autoaceitação — diferente de algumas linhas de pensamento que enxergam o estresse e a tensão como necessários para a produção de grandes obras criativas.
A tensão, na verdade, é um grande inibidor da criatividade. E a principal delas: a tensão de não se enxergar criativo.
O que tenho observado em minha pesquisa sobre criatividade — entrevistando desde artistas dos mais variados meios até ex-integrantes do sistema prisional, passando por profissionais da indústria criativa e das áreas ditas “não criativas”, como advogados ou contadores — é que criatividade não é uma exclusividade de poucos escolhidos.
O que, sim, é exclusivo é a permissão de se enxergar como criativo, seja por marcadores de gênero (mulheres são muito mais julgadas em seus erros, o que aumenta o medo de se expressar genuinamente, como muito bem me explicou Cris Bartis, criadora e apresentadora do podcast Mamilos, depois de uma onda de ataques que sofreu recentemente), de raça, ou — como acontece principalmente na indústria criativa — de cargo.
Numa indústria onde existem cargos e departamentos chamados “Criativos”, qualquer outra área só pode ser a dos “Não-Criativos”. Para entender melhor, brinco como se existisse o departamento dos “Bonitos”, e o resto seriam os dos “Feios”. Com o mercado em constante transformação, e a crescente pressão por inovação em todas as áreas para geração de soluções e negócios, é impossível não olhar para como todas as pessoas se enxergam dentro desse sistema.
Nem todo mundo pode, consegue ou quer viver de um talento considerado classicamente como criativo. Mas todos manifestamos essa criatividade cada vez que interagimos com o mundo de uma maneira única que dá vazão ao nosso universo interior e visão de mundo.
E para deixar alguém confortável a ponto de manifestar essa individualidade, em coisas simples como uma opinião verdadeira em uma reunião ou em um projeto, é preciso pensar tanto em seu mundo interior quanto no mundo exterior. Um mundo interior que se valorize e se enxergue capaz de criar; e um ambiente exterior que permita, estimule e acolha essas expressões.
Muito já está se fazendo para evoluir os ambientes tóxicos do mercado de comunicação de antigamente, combatendo práticas racistas, sexistas e homofóbicas — e obviamente muito ainda se pode fazer —, mas acredito que também existe a oportunidade de lutar contra o preconceito e pela valorização das áreas ditas “não-criativas”.
Para deixar bem claro o que quero dizer, cito um exemplo que aconteceu recentemente ao final de um workshop de criatividade que conduzi em uma agência de publicidade. Uma pessoa do departamento financeiro (ou seja, da “não-
-criação”) veio me agradecer por ter permitido que ela se enxergasse como uma artista e uma pessoa criativa. Durante o processo, ela se reconectou com uma das cenas mais felizes de sua infância: estar brincando rodeada de papéis de carta. Ela me disse que hoje em dia, nos fechamentos de mês, se sentia rodeada dos mesmos papéis, mas como aquilo era diminuído pelos outros, não conseguia mais ver valor naquilo.
Uma pessoa conectada com sua essência é uma pessoa potente. E para criar uma organização realmente potente e inovadora, é preciso que ela esteja livre dessa tensão, onde cada elemento se valorize e que também se sinta valorizado.