Das maravilhas infinitas da escrita
O formato de thread mostra que a escrita sempre dá um jeito de contar histórias
O formato de thread mostra que a escrita sempre dá um jeito de contar histórias
Tweet: Eu adoro panquecas.
Réplica: Ah, então você não gosta de waffle.
Tréplica: Eu disse que gosto de panquecas.
Não são tempos fáceis para o diálogo nem para a interpretação de texto. Há uma animosidade tão grande que importa pouco o que está escrito. Ainda assim, todos os dias, visto o meu escafandro e vasculho o Twitter na busca de encontrar um lugar para espairecer. De todas as redes sociais, é a que eu mais uso, a despeito do cheiro de napalm (que eu também provoco) pela manhã. Mudando o olhar, posso esbarrar com o Homem-Aranha carioca que vislumbra a Mary Jane no trem, com a sabedoria invejável da Dorrit Harazim, com a generosidade intelectual do Luiz Antonio Simas, com as postagens repletas de alegria do Rex Chapman, com preciosidades da música e do cinema, com bobagens adoráveis em contas estreladas por cães ou gatos, com um perfil que posta frases do Mark Twain, com pessoas incríveis dispostas a compartilhar conhecimento, com alívios cômicos, gols antigos do Flamengo, respiros de todos os tipos. Entre tudo isso, há um formato que mostra que a escrita sempre dá um jeito de contar histórias: a thread. Na tradução popular: fio, linha. Na definição do amigo Pedro Guerra: rabiola, palavra que serpenteia os céus e as regiões áridas do Twitter com a mesma malemolência.
Há rabiolas dos mais variados estilos. Em janeiro de 2019, houve uma leva farta de histórias que começavam com “1 like = 1 curiosidade”. Assim, o tuiteiro podia mergulhar no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro com as palavras de quem trabalhou por lá, descobrir o poliamor em uma sociedade monogâmica, fartar-se de curiosidades aleatórias sobre a Finlândia, ler a vivência de quem labuta em supermercado, entender a dor de ser uma mulher negra na medicina.
Uma thread pode ter um começo que parece impossível não dar sequência à leitura, o tal do stopping power, tão falado em reuniões. Um exemplo que me vem à cabeça: “Sou especialista em psicologia canina e nestes tweets explicarei, por raça, em quem os cachorros votariam na eleição presidencial de 2018.” É tudo tão inesperado na formulação que você começa a ler sem nem perceber.
Um mestre nessa forma de escrita é o @tantotupiassu, o TANTO. Ele tem threads que trazem aquela vontade de estar em um bar, na mesa dele, e ouvir todas aquelas histórias. Em uma delas, o uso das controversas reticências abre o caminho para fisgar o leitor, deixando no ar (para pavor de Graciliano Ramos, que afirmava que era melhor dizer do que deixar em suspenso) aquilo que será dito no próximo tweet. Eis aqui o trecho conforme postado:
“Outro dia tava lendo matéria sobre crianças e paranormalidade.
Eram histórias sobre crianças que diziam ver espíritos, que ouviam vozes e, na maior parte das vezes, eram extremamente convincentes.
Aí, lembrei de uma coisa…”
Em outro trecho, o autor usa novamente o recurso:
“Não é uma história de terror.
É só um breve relato de coisas estranhas que nos cercam e, por vezes, habitam silenciosamente a nossa vida…
…ainda mais num apartamento antigo e cheio de histórias, cheio de gente que viveu e morreu…”
Não vou dissertar sobre a elasticidade da língua escrita, porque me falta muito conhecimento para tal. Reforço a sensação, apenas, de que nesse formato das threads não há regras estabelecidas para a melhor forma de contar um caso. As reticências, que tendemos a usar em doses frugais, podem ser fartas; as exclamações, que tanto me apavoram, podem ganhar um caráter irônico ou de impacto visual. Gifs, memes e fotos ajudam a compor a história. O @tantotupiassu – que se diz um cavalo que conta histórias – faz o diabo nesse jeito de escrever e entreter numa plataforma em que tudo pode ser dispersão.
Em 2017, surgiu uma thread que virou a minissérie nas mãos de Miguel Falabella: “Eu, Minha Avó e a Boi”. Um relato sobre uma inimizade bélica entre a avó do autor, Eduardo Hanzo, e uma vizinha, a Boi. Uma leitura absolutamente deliciosa. É curioso perceber que a adaptação também sofreu algumas críticas, comuns a livros que são transpostos para o cinema, de que a forma escrita era melhor. Aquilo que imaginamos ao ler é sempre um universo particular de imagens. É uma tarefa hercúlea fechar esse pacote de uma maneira que deixe todo leitor e toda leitora feliz com o resultado.
Foi em um domingo de insônia pandêmica que encontrei #PabloeLuisao. A rabiola já estava bem encaminhada quando cheguei. Os personagens estavam desenhados, o enredo, porém, ainda estava muito longe do que eu poderia imaginar sobre os limites da minha gargalhada em leitura. Eu chorei de rir quando tudo ao redor era só tensão. Não saberia dizer o valor disso. O começo da história tem as tais reticências, tem letras maiúsculas, tem a danada da exclamação:
“Eu amo essa estória da caixa-d’água que saiu rolando e amassando carro. Meu pai tem um melhor amigo, o PABLO, (pense num bicho enrolado!) que só arrumava serviço roubada e posso ouvi-lo: ‘Ô, Luisão, peguei o trabalho de derrubar a caixa-d’água lá, tem segredo, não! É só quebrar…’”
Dali em diante, o que vemos é Paulo Vieira nos levar para lugares que equilibram a existência de tanto dissabor e tacanhice. Tem curso de detetive do Instituto Universal Brasileiro, tem uma paixão no parque de diversões, o ionizador de água, o Seu Justino, a cerca elétrica com energia descompensada, campeonato de karatê, empreendedorismo raiz de todos os tipos, episódio de Natal. Tem, sobretudo, a genialidade de um jeito de conectar todas essas histórias como se fosse alguém íntimo a lhe contar. #PabloeLuisao vai virar uma série. O meu universo particular de imagens já está montado, mas estou pronto para desmontá-lo em uma risada. Porque já tive a certeza de que um tweet era uma limitação da escrita. Mas há sempre alguém escrevendo histórias com um brilho capaz de abrir novos rumos.
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