Marcas precisam virar produtos da cultura. Ou vão ficar para trás
As formas tradicionais de construção de marca não vão mais entregar a relevância que as empresas tanto almejam

Crédito: Ilustrações: Ardea Studio/Doctor Black Shutterstock/ Arte Mayara Jade
Campanhas sobre propósito de marca estão defasadas. Foi com essa provocação que Bruno Bertelli, CEO global da Le Pub e CCO da Publicis Worldwide, começou sua palestra no Festival do Clube de Criação, que aconteceu recentemente. E, antes que eu entre no assunto, registro aqui os meus parabéns para a Joana Mendes e todo o time do Clube de Criação, não somente pela organização, mas pela altíssima qualidade das conversas e reflexões sobre nós como sociedade e nossas responsabilidades como comunicadores. O próximo, não percam e patrocinem.
A conversa do Bruno provocou e deu caminhos para refletirmos sobre como as formas tradicionais de construção de marca não vão mais entregar a tal da relevância que tanto buscamos. Explico.
De forma geral, a metodologia de construção de uma marca se ancora em desenhar uma arquitetura estratégica que mapeia coisas como papel da marca, o papel do produto/serviço e seus principais diferenciais, insight e afins, que culminam na definição do propósito, da essência da marca. Com essa arquitetura definida, partimos, então, para o desenho da estratégia de comunicação, cujo pensamento está a serviço do negócio, guiado pelo propósito. Essa metodologia faz com que as decisões tenham o propósito da marca como ponto de partida da comunicação, da definição de um conceito, uma ideia e suas execuções. É esse ponto de partida que ele nos convida a subverter.
É estranho pensar em definir uma ideia que não parta da essência, do propósito da marca, porém, fica menos estranho se entendermos que o papel da marca está em transformação, porque a nossa cultura e como as pessoas a consomem está em transformação. A era de comunicação de propósito e manifestos acabou. Agora, as marcas precisam virar produtos da sua cultura. Para uma marca crescer, ela precisa aprender a hackear a cultura na qual está inserida.
Nunca foi tão barato consumir cultura. Hoje, é mais barato assinar o Spotify do que era comprar vários CDs, a mesma lógica vale para Netflix e os DVDs, informação e redes sociais, e por aí vai. Isso fez com que a gente tivesse mais facilidade de acesso a diferentes coisas, e consumisse cultura em diferentes camadas. Estamos cada vez mais num modo multitask de consumir e aproveitar a cultura.
Esse comportamento gerou um grande crescimento de diferentes nichos dentro da cultura, impactando diretamente o conceito de mainstream que, da forma como entendíamos, não existe mais. Agora, a cultura se forma na intersecção desses diferentes nichos. Um bom exemplo é o fenômeno de Stranger Things, que não é somente uma série que conta a história de alguns personagens, como é também sobre Dungeons & Dragons, Stephen King, Kate Bush e a década de 1980. Conteúdo, entretenimento, música, moda, jogos, são muitas referências juntas que compõem essa experiência. Se uma marca quiser não só fazer parte da conversa, como criar a conversa, ela precisa entender como se conectar a esse lugar.
Dentro desse mesmo contexto, nunca foi tão caro alcançar muitas pessoas. E complexo. As marcas não podem mais contar somente com a possibilidade de pagar por atenção. Ainda mais considerando um cenário no qual a maioria dos formatos de propaganda é intrusivo, interrompendo a experiência das pessoas.
Até então, entendíamos que construir uma marca se fazia através da sua conexão com momentos e tendências, mas esse cenário descrito anteriormente nos aponta a oportunidade de vermos que, assim como música e filmes, marcas são produtos culturais também. E o combustível desse capital cultural está na conexão com arte, design, arquitetura, moda, comida, bem-estar e tudo mais. Construção de marca acontece por meio de valor cultural.
Apesar de não ser uma jornada simples, Bertelli trouxe um framework de quatro passos que ajudam muito o processo: 1º – Mapear o que a categoria entende como cultura mainstream; 2º – Identificar qual disrupção social está emergindo; 3º – Identificar a oportunidade ideológica; e 4º – Definir o papel da marca dentro da cultura.
Se existe uma categoria que já entendeu isso, é a da moda. Gucci e Balenciaga, por exemplo, entendem suas marcas como produtos culturais. Eu pude viver isso bem de perto, quando fui a head global de comunicação da Diesel, trabalhando junto com o Bruno Bertelli num período importante de transformação da marca. O grande segredo, se posso chamar assim, foi ter consistência e disciplina em construir o ponto de vista sobre o contexto em que as pessoas com as quais a marca queria se conectar estavam inseridas. Diesel é uma marca que quer redefinir o que significa sucesso pessoal através do constante desafio às conformidades, às normas.
Todas as ideias que conversamos tinham o mesmo ponto de partida — contexto cultural. Falamos sobre imperfeições, cultura do cancelamento, influenciadores, falsificação e tantos outros temas, e o que mantinha a consistência da marca era o seu ponto de vista.
Se o mundo quer perfeição, a Diesel te desafia a seguir com suas imperfeições (Go with the flaw). Se todo mundo quer ser um influencer, a Diesel vai te mostrar que a melhor coisa é ser um seguidor (Be a follower). Se o mercado da moda tem um enorme problema com falsificação, a Diesel vai criar uma loja em Chinatown (New York) com produtos originais, como se fossem falsos (Deisel. Go with the fake.).
Esse foco fez com que a marca ocupasse um novo espaço na cabeça das pessoas, nas conversas, e sabe o que mais isso fez? Vender. Pois é, em nenhum momento nesse texto falamos sobre como vender produtos, mas foi isso que aconteceu. Porque marcas que entendem a cultura e se tornam parte dela, vendem. E muito.