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Não acredito que você chorou no júri de Cannes

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Opinião

Não acredito que você chorou no júri de Cannes

Coragem é um impulso capaz de transformar o mundo ao nosso redor; é, portanto, criatividade em si


9 de julho de 2019 - 6h00

Go Back to Africa: Campanha da FCB/ Six Toronto para Black & Abroad ganhadora do Grand Prix de Creative Data, no Cannes Lions 2019 (Crédito: Reprodução)

Eram quase 10 da noite no último dos quatro dias em que passamos naquela sala. “Temos o nosso Grand Prix e os Leões”, disse o presidente do júri, apontando para a tela de TV com os trabalhos que seriam premiados em Creative Data. Eu e os outros oito jurados em volta, contemplando o resultado, todos em pé, rodeados por paredes cobertas de post its e folhas de flipchart com rabiscos já incompreensíveis. Não me lembro se foi Maurice, um estrategista negro americano radicado na Austrália, ou Hanan, uma marroquina que é, sem dúvida, a especialista em dados mais brilhante que eu conheci na vida, que puxou as palmas. Mas sei que foi nos segundos de silêncio que antecederam esse momento que tudo aconteceu ali dentro.

Olho para a tela: 13 trabalhos diferentes. Nenhum se repetia. No topo deles, “Go Back to Africa”, que teve nos dados um aliado para subverter um discurso racista e vender destinos turísticos. À minha volta, encontro os olhares de alguns colegas e, com eles, o eco de tantos pontos de vista que apareceram ao longo dos dias, consequência inevitável das nossas trajetórias tão diversas. Diversas mesmo! É a primeira vez que reparo que são apenas dois homens brancos heterossexuais em uma sala com dez pessoas tomando decisões importantes na indústria de comunicação. A primeira vez na vida.

Eu, que me acostumei a ser a exceção, naquele universo era só mais uma. E sabe o que é mais maluco? Nunca me senti tão vulnerável. Durante muito tempo, estar em evidência por ser diferente fazia minha mão suar. Como quando um chefe pediu para eu segurar meus trejeitos numa reunião. Ou quando certa vez troquei o gênero de um namorado enquanto falava com ele ao telefone para evitar piadinhas no trabalho. Com o passar dos anos, descobri nessa vulnerabilidade minha força. Inclusive para me reafirmar. O padrão imposto já não me assustava.

Sabe por quê? Porque só existe criatividade quando se tem coragem para desafiar o que é padrão. E coragem é qualidade inerente aos vulneráveis. Já não falo aqui somente de mim ou da situação completamente nova que vivi olhando para aquele júri. Mas também de absolutamente todos os trabalhos premiados com Grand Prix este ano. É preciso uma marca se reconhecer vulnerável para dizer “Acredite em algo, mesmo que isso signifique sacrificar tudo”. É preciso coragem para disponibilizar sua maior vantagem competitiva, fruto de décadas de pesquisa, para toda a indústria. É preciso as duas coisas para convidar o consumidor a comprar seu produto na loja do concorrente. Coragem é um impulso capaz de transformar o mundo ao nosso redor. É, portanto, criatividade em si.

Quando o maior Festival de Criatividade anunciou instruções para o júri combater estereótipos (de gênero, raça, sexualidade), ele também se assumiu vulnerável. Na dianteira de uma indústria que está muito longe de entender o que isso significa, porque faz pouca autocrítica. O curioso é que esse direcionamento nem sequer foi citado no meu júri. Ninguém precisou usar essa carta. Já ouviu-se tanto — nos palcos de Cannes, inclusive — sobre cause washing e marcas que adotam discursos que não condizem com suas ações, que o festival parece ter entendido bem o recado. A orientação para os jurados já estava aplicada na própria formação do júri. Um movimento de dentro para fora, como deveria ser.

De volta à sala, olho novamente para a tela e os trabalhos que estão ali são reflexo desse movimento e, claro, daqueles pontos de vista tão diversos. De fato, não me lembro quem puxou as palmas, mas acho que fui o primeiro a chorar depois que elas começaram. E não o único. É difícil não se emocionar quando um conjunto de exceções se percebe construindo um novo padrão. Que, com a mesma coragem, está fadado a ser desafiado por outras. Até lá, os leões de amanhã esperam por novos desvios.

*Crédito da foto topo: Reprodução

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