“Não deixe o burocraman entrar”
Este é um texto sobre reinvenção, um dos grandes desafios enfrentados especialmente por profissionais de criação que, em dado momento da carreira
Este é um texto sobre reinvenção, um dos grandes desafios enfrentados especialmente por profissionais de criação que, em dado momento da carreira
Certo dia, Clint Eastwood estava jogando golfe com seu colega, o cantor e compositor de música country Toby Keith. Clint disse a ele que, na semana seguinte, faria 88 anos (2018); completou 93 em maio último. Toby perguntou o que ele ia fazer para comemorar o aniversário, e Clint respondeu que começaria a gravar um filme dali a uma semana. Surpreso, o amigo perguntou qual era o segredo para, naquela idade, ainda ter motivação, e Clint respondeu que, todas as manhãs, quando se levantava, “não deixava o velho entrar”.
Apesar de os desafios de se manter ativo diante do envelhecimento serem muito diferentes, Clint Eastwood traz lições muito importantes sobre manter o foco para se sentir vivo, ativo, produtivo e – por que não – criativo.
Este é um texto sobre reinvenção, um dos grandes desafios enfrentados especialmente por profissionais de criação que, em dado momento da carreira, assumem também a liderança de uma agência. Aprendi (o aprendizado é diário e infinito) que criar um negócio amplifica nosso repertório criativo também sobre criar campanhas. Há inúmeros exemplos, no mercado, de profissionais que conseguiram se manter brilhantes enquanto criativos, se reinventar no empreendedorismo e aprimorar o espectro de suas lideranças. E, talvez, mesmo sem conhecer o mantra de Clint Eastwood, tenham seguido receita semelhante para não deixar o que é inevitável no dia a dia de um empreendedor tirar seu próprio brilho. Se Clint luta contra as limitações que a idade impõe, os criativos que assumem papel de gestores não devem permitir que as novas funções engessem sua criatividade. Ou, talvez, como dissesse Clint: “Don’t let the burocraman in”, com o perdão do neologismo.
Para ajudar, para que você possa evitar ou desviar de algumas armadilhas possíveis, tomo a liberdade de compartilhar algumas das lições de quem enfrenta o desafio de conciliar prazerosamente a gestão com a criação. Elas valem para diversas áreas profissionais, mas, especificamente para o mercado publicitário, muitas delas podem ser valiosas para quem considera fazer essa migração em algum momento da carreira.
1) Planeje a nova etapa de sua carreira. Salvo em situações extremas ou convites repentinos, o ideal é planejar o momento da transição e se preparar ao máximo, na teoria e na prática. Cursos de gestão ajudam, assim como conversar com o maior número de pessoas que já passaram pelo mesmo desafio. Se for para abrir sua própria agência, o controle sobre esse processo é todo seu. Quando o convite vem da direção da empresa, essa preparação normalmente faz parte do pacote de novas atribuições, que invariavelmente vai afastar você em parte ou totalmente do dia a dia da criação.
2) Tenha um mentor. Ou mentores. Da mesma forma que você se espelhou e, com sorte e talento, pôde trabalhar diretamente com criativos que inspiraram você na carreira, faça o mesmo agora como líder de seu negócio. Encontre seus novos mentores. Não necessariamente em publicidade.
3) Construa novas pontes. Mas não ignore as que você já tem. O foco excessivo na gestão pode desconectar você do mercado. Um mercado é construído por meio de hiperconexões, de pessoas, de competição, sim, mas também de empatia com os concorrentes e admiração por eles. Crescemos à medida que estamos em um mercado que exige o melhor de cada um de nós. Faça parte dele. Pelo bem do negócio. Pelo fortalecimento da nossa indústria.
4) Delegue para continuar sendo estratégico. O desafio de assumir o comando de um negócio (no caso, de uma agência) não tem chance de sucesso se algumas funções não forem delegadas. Seja na parte mais técnica da operação – que dificilmente um profissional de criação vai dominar com mestria (é pouco provável que você seja o CFO; seu diretor financeiro tem mais chances de chegar lá) –, seja nas atividades mais rotineiras do processo criativo, delegar significa reservar o melhor de seu tempo para as decisões estratégicas tanto na gestão quanto no direcionamento criativo de cada trabalho.
5) Recarregue. A dupla jornada, se bem-sucedida, é muito gratificante, mas o processo exige uma capacidade (obrigação, eu diria) permanente de se reenergizar para poder aguentar a intensidade da rotina e evitar, com todas as forças, o burnout. Cada um de nós sabe o que funciona melhor para si. Para alguns, pode ser a prática de um esporte; para outros, hobbies, viagens ou qualquer atividade que dê prazer e permita o desligamento ainda que temporário do trabalho.
6) Curta todos os melhores momentos. Conquistar uma nova conta, fechar uma parceria, contratar excelentes profissionais, apresentar uma grande campanha para o CMO são conquistas que trazem satisfação pessoal e profissional e, por isso, devem ser saboreadas. Jamais permita que esses melhores momentos se tornem cotidianos. Independentemente do tamanho da vitória, celebre.
7) Vamos juntos, que vamos longe. Compartilhe o sabor de cada conquista com todos da agência, fazendo com que se sintam parte. Porque são de fato. O líder criativo precisa inspirar e mostrar que as grandes ideias podem vir de qualquer lugar da empresa. Crie seu negócio com o mesmo fascínio com que você cria(va) campanhas.
8) Você agora é técnico. Mostre como se joga jogando também. Reservar um espaço do dia para participar de brainstorms com a equipe de criação e até criar projetos é saudável. E divertido. Sempre com o cuidado de não colocar uma sombra no diretor de criação, que cuida com muito talento do dia a dia. Fazer parte de uma ficha técnica da criação precisa ser motivo de orgulho, de colaboração genuína. Melhor ainda se sua equipe se sentir assim ao colocar seu nome ao lado do deles também.
9) Não brigue com os números. O uso de ferramentas para gestão é uma necessidade, sobretudo para quem precisa falar sobre números com o diretor financeiro e não tem fluência. Deixe as planilhas jogarem ao seu favor. Interprete os números. Eles têm muito a dizer sobre o seu negócio e sobre os seus clientes. Pense que os softwares de coleta de dados, grandes aliados da criação, vão ganhar novos amigos na sua mudança para a gestão do negócio.
10) Tenha disciplina. Crie a sua. Não perca o foco. Importante: não seja dragado pelo que pode dispersar você do seu objetivo. Reserve algum horário do dia para, por exemplo, responder a e-mails, mensagens, fazer pagamentos ou ligações. Se você tentar fazer tudo ao mesmo tempo, não fará nada bem.
11) Aprenda a sentar em uma cadeira desconfortável. Sim, ela o é. Por diversos motivos. Internos e externos. Dos mais variados tamanhos. Muitos esperados. Outros que vão chegar de surpresa. Surpresa desagradável, é importante saber. Encontre o conforto no desconforto. Os problemas não vão acabar. A forma como você lida com eles é que sempre pode mudar.
No fim das contas, o grande segredo para um profissional de criação se tornar um gestor criativo é saber sair do dia a dia da criação sem deixar a criação sair dele. No comando da empresa, sua principal missão será sempre entregar um trabalho à altura do que você sonhou quando pivotou seu negócio. Os clientes esperam isso de você. O criativo que divide o mesmo CEP que o gestor espera isso de você. Vencer esse desafio é uma questão de sobrevivência. Se a gestão matar sua criatividade, seu negócio joga fora a ideia genial que foi criá-lo.
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