22 de abril de 2020 - 11h31
(Crédito: Marcos Medeiros)
“Se ficar vesgo de frente pro vento, é para sempre”; “Apontar o dedo para as estrelas dá verruga”; “Se não lavar os pés antes de dormir, vem um espírito lamber”; “Se deixar o chinelo virado, sua mãe morre”; “Abrir o guarda-chuva dentro de casa dá azar”. Sou de uma época em que todo aviso de mãe parecia uma sinopse de filme de terror. Tinha praga para quem comesse em frente ao espelho, para quem contasse a comida na panela e até para quando relampejava. Havia certa sofisticação na criação das histórias, visto que o tal espírito lambedor tinha até um nome: Maria da Beloura, que, ao pesquisar hoje, percebi que deve ser uma invenção livre da minha mãe. Eu enfrentava cada uma dessas maldições sem medo. Uma delas — só uma — pegava na minha alma, porque envolvia o mar: não pode mergulhar depois de almoçar para não morrer de congestão. E eu ficava a olhar o mar e o relógio da praia até completar uma hora. Penso que a minha mãe me avisava, sem querer, que eu devia valorizar mais o tempo das coisas. Uma hora devia ser sobre comer, a outra sobre descansar e, finalmente, o momento de mergulhar. Cada qual no seu tempo.
Esse era o início do artigo que eu tinha programado. Era um outro mundo. Tudo mudou abruptamente. Em um primeiro momento, a negação. Isso vai passar rápido, logo mais estaremos de volta. No segundo momento, a aceitação dos fatos. Claro, para quem acredita em fatos, em ciência, na verdade que nos cerca e que não é uma gripezinha. No terceiro momento, começar a tentar imaginar o que será do mundo, das relações familiares, do mercado de trabalho, dos eventos com aglomerações daqui para frente. Causou-me certa surpresa a quantidade de aprendizados que as pessoas já conseguiam listar no terceiro dia de quarentena. E certa pressão por ocupar o tempo (que eu também exerci): leia isso, veja aquilo, não perca aquilo outro, olha esse curso grátis. Por isso mesmo, não trago grandes lições, muito menos certezas. Trago as observações mundanas e a importância do tempo das coisas.
Tenho sonhado com a minha mãe, com o apartamento da General Barbosa Lima, com o apartamento do Jardim Botânico, onde os micos faziam um sistema de revezamento muito intrincado para roubar as frutas lá de casa, coisa de filme da Pixar. Minha mãe era uma cigana carregada de anéis, trabalhada em perfumes e com uma inquietude tamanha que moramos em nove lugares diferentes. As mudanças não eram nada simples. Ela tinha uma veia acumuladora, só a quantidade de discos de vinil girava em torno de três mil. Umas 40 caixas, mais ou menos. Nesse tempo em casa, sonho com ela e sonho com o meu pai, disfarço até que eles se davam bem, porque, ao dormir, busco um lugar sem as agruras da vida adulta, com cheiro de vitamina de banana e o eterno susto de ver Digby, o maior cão do mundo, e imaginar que ele inundaria uma cidade com xixi. Odeio mudanças, mas guardo da minha mãe o espírito inquieto que me faz ir e vir pelo apartamento, para o cansaço do meu idoso cão, o Pulga. Do meu pai, guardo as conversas que nunca tivemos por que demorei uma vida para entender os assuntos que ele abordava. E essas conversas me fazem falta.
Olho para a rua e me lembro dos dias em que caminhava mirando a tela do celular, como se isso fosse resolver algo. No retorno, quero olhar mais ao redor. Eu deveria ter esticado a conversa com o português, dono da pizzaria aqui do lado (Adesso); bem que podia ter guardado os contatos dos feirantes com quem converso todos os domingos; e ter valorizado ainda mais o balé dos garçons do Bar do Giba, o sorriso da Kátia, o falso mau humor do Giba. Verdade seja dita, mudou o sentido de perguntar “Está tudo bem com você?” Parece mais legítima a indagação, o cuidado que não havia mais nessa questão, e ela retorna como quem encontra uma saudade esquecida: a saudade do outro.
Voltei para os vinis porque eles ensinam sobre o tempo. Havia um cuidado nas capas, nos encartes, o som do estalido que traz vida, a destreza para acertar a agulha no intervalo entre as faixas e o fato de que você precisa virar o lado para ouvir mais músicas. Em casa, agora, tem bolo toda semana. A Clara é quem tem feito e, enquanto faz, ensina a todos sobre o tempo. Selecionar os ingredientes, bater a massa, esquentar o forno, esperar, esperar, esperar. O sabor é comemorado como há muito não se via em casa. Sinto que estamos mais juntos. Mesmo que a gente queira muito, o bolo não fica pronto antes do que diz a receita.
No momento em que algumas pessoas celebram que é possível consumir podcasts, audiolivros e vídeos com o dobro da velocidade normal, estou na outra ponta. As coisas têm o seu tempo. Estamos confundindo velocidade de consumo com capacidade de apreensão. O neurocientista Facundo Manes é uma voz importante nestes tempos e dele busco as palavras: “A mudança de tarefa, de responder um WhatsApp para ir ao Instagram, colocar uma foto, voltar para o e-mail e depois para o Instagram e WhatsApp… Tudo isso, toda mudança de tarefa requer um custo cognitivo que nos torna menos inteligentes. Existem estudos que mostram que essas mudanças de tarefas impactam até 10 pontos no Q.I. e nos estressam, elas nos esgotam e nos causam insônia.” Quem consome conteúdo no dobro da velocidade vive a ilusão de uma supercapacidade cognitiva para ganhar somente uma moeda social: dizer que viu mais coisas.
Nos primeiros dias de distanciamento social, surgiram posts estilo “eu sempre estive preparado para trabalhar a distância”. OK, pode ser, mas o mundo não era este, não. Você podia caminhar na rua para espairecer, podia abraçar um amigo, tomar um chope, tocar no botão do elevador sem o sentimento de paranoia que isso carrega. É tudo novo, é tudo assustador. Não é uma discussão sobre as vantagens do home office. É sobre viver uma quarentena sem prazo definido e pensar nas consequências avassaladoras para a economia. E, na ânsia de criar vantagem nesse cenário, o tempo, mais uma vez, foi desrespeitado. A cultura do imediatismo nos leva a achar que é preciso dizer algo a todo momento. O silêncio — a pausa necessária para assentar os fatos — foi esquecido, e, muitas vezes, fala-se bobagem.
Fiz da quarentena um espaço sobre o tempo das coisas. O tempo que a roupa leva para secar, o tempo de fazer a cama, o tempo de um solo de gaita do Little Walter, o tempo de molhar as plantas, o tempo de ler um livro, o tempo ao lado das pessoas que mais amo no mundo. Nessa hora, lembro-me de uma entrevista do Ricardo Darín, em que ele disse que não precisava de muito dinheiro porque ele tomava dois banhos quentes por dia, e isso por si já era um privilégio. O tempo, a geladeira cheia, o Wi-Fi, ter mais de um cômodo na casa, tudo isso é privilégio neste país. Reconhecer é necessário.
Minha esposa colocou um papel escrito “saudades” e uma caneta ao lado. Jantar com os amigos, pão francês, social. Escrevi: mar, Ipanema, Morro Dois Irmãos. Nesse reencontro, entre o sal e o céu, vou mergulhar no recanto profundo da simplicidade das coisas. É lá que sou mais feliz.
*Crédito da foto no topo: Mfto/iStock