O tosco (e necessário) PL das Fake News
O objeto estrito do projeto — como tantos outros em análise ou já aprovados em vários países — é a regulação de atuação das plataformas tecnológicas, também erroneamente chamadas de big techs
O objeto estrito do projeto — como tantos outros em análise ou já aprovados em vários países — é a regulação de atuação das plataformas tecnológicas, também erroneamente chamadas de big techs
O enunciado do Projeto de Lei 2.630/2020, bem como seu apelido, PL das Fake News, já começam mal exatamente no começo.
O projeto visa sancionar a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
“Liberdade com Responsabilidade” foi o pilar conceitual político que vigorou na ditadura militar e deu origem a todo o arcabouço legal que justificou o cerceamento à liberdade de expressão, embasou prisões e induziu em seus porões à morte quem lidava com a informação. Ou não.
Já “fake news”, em inglês, são notícias falsas. Notícias são informações apuradas, editadas, produzidas e difundidas por órgãos da imprensa. Verdadeiras ou não. Mas o objetivo do PL não visa, em essência, cercear diretamente a liberdade dos órgãos de imprensa (pelo menos não até o momento) mas de toda a “Internet”, outro equívoco de enunciado. A internet é um bicho bem maior que a imprensa ou a mídia.
O objeto estrito do projeto — como tantos outros em análise ou já aprovados em vários países — é a regulação de atuação das plataformas tecnológicas, também erroneamente chamadas de big techs (a SpaceX, do Elon Musk, é uma big tech e não me parece que o projeto esteja preocupado com ela).
A “internet” é uma rede praticamente sem fim, de alcance global, que é também, sem qualquer sombra de dúvida, um dos maiores inventos de toda a história da humanidade, sendo hoje o mais poderoso instrumento jamais existente de difusão de conhecimento, dados, informações, fatos, acontecimentos, notícias (sim, por que não, não é mesmo?), conversas, pensamentos, estudos, pesquisas, artes em geral e opiniões de todos quantos têm acesso a ela. Na internet ocorrem também transações comerciais e financeiras. Toda a economia global trafega pela internet. A medicina, incluindo complexas cirurgias, se utiliza hoje dela para ampliar eficientemente sua ação. A educação idem. As mais avançadas conquistas do setor agrícola envolvem a internet. E eu poderia me estender muito mais aqui.
Longe de ser apenas uma simplória questão semântica, é uma pretensão sem fim, que revela mais do que esconde, a ignorância dos nossos legisladores sobre a complexidade tecnológica de com o que estão, de fato, lidando. O PL 2.630 é toscão, exatamente como nosso Congresso. Está ainda cheio de buracos legais, operacionais e inviabilidades práticas, sendo quem implanta, define o que sim e o que não, o pior e mais desafiador deles.
A palavra “transparência”, que também aparece na titulação da Lei, deveria ser tanto ética, quanto tecnológica. Mais especificamente, algorítmica. Deveríamos poder saber a lógica e os parâmetros dos códigos, já que são eles que determinam o que se expõe para cada indivíduo. Como nas leis de privacidade de dados. Algo que nem de longe nossos legisladores esbarraram pensar.
Dou uma dica aqui. O PL deveria designar-se a criar um ambiente digital mais seguro e confiável onde os serviços prestados garantissem que os direitos fundamentais dos cidadãos, regulados na Constituição, fossem protegidos. Simples e complexo assim.
O que fiz aqui e agora foi apenas copiar o objeto de regulação do Digital Services Act, a legislação europeia que trata do tema. Veja, quem me lê, “digital services” e não “internet”. Sendo que lá, ao contrário daqui (ou melhor, aqui, ao contrário de lá), há duas legalizações siamesas sendo votadas e implantadas concomitantemente. Essa acima e uma outra, o Digital Market Act, que cuida das implicações de mercado e de negócios envolvidos nas discussões.
Em ambos os casos, União Europeia e Brasil, o único ponto em comum é a preocupação de que as grandes plataformas digitais sejam reguladas para que sejam coibidos abusos ao bem comum da sociedade. Só que aqui, a julgar pelo texto do PL em discussão até o momento em que escrevo estas bobagens, se todas essas empresas quebrarem, fecharem ou saírem do Brasil, tanto faz.
Na parte de mercado das leis europeias, definiu-se, inclusive, o tamanho das operações que seriam objeto dos dois atos legais em gestação, de 10% de cobertura da população dos países aderentes. A lista está lá, no corpo da lei, e abrange todos os serviços digitais das grandes plataformas que conhecemos.
Lá foram também convocadas dezenas de instituições da sociedade civil e da academia para debates técnicos com o objetivo de instrumentar o Congresso a tomar suas decisões.
Citei essas leis europeias porque a DSA e a DMA são, possivelmente, os mais avançados e completos instrumentos legais sobre a regulação de serviços digitais do mundo hoje e a diferença entre esses Atos e o nosso PL são abissais.
Isto posto, declaro para quem quiser ler e ouvir, que sou a favor da regulação. Não dá. As próprias plataformas citadas concordam hoje com isso. Há excessos de toda natureza e eles precisam ser regulados. Ponto.
Mas esse é apenas o início de um mar de complexidades jurídicas, morais, éticas, étnicas, ideológicas, religiosas, filosóficas, políticas, além de empresariais e comerciais.
Quando entramos no ambiente movediço das discussões essencialmente filosóficas sobre verdades e mentiras, envolvendo, portanto, aquilo que seja falso ou legítimo, enveredamos também por um cipoal tão sem fim quanto a própria internet.
Isso para não falar de dois dos principais cernes dessa questão toda, que são a liberdade de expressão e o livre mercado (exatamente os dois pilares das leis inglesas). Aí, cada qual de nós tem lá suas próprias (e, numa democracia, legítimas) opiniões a respeito.
Só no mundo digital pós-internet passamos efetivamente a compreender globalmente como somos ricamente diversos, mas também como somos radicalmente conflitados. O que dificulta tudo a todos ainda mais.
Pois bem, esse é o dado da realidade contemporânea. E segue sendo um instrumento criado pelos gregos em 510 a.C., o único instrumento que, apesar de cheio de falhas, funciona para tentar regular tudo isso, que é a Democracia. Toda e qualquer ameaça a esse instrumento tão delicado e frágil, quanto inestimável, deve ser rechaçado categoricamente.
Pois que venham as complexidades envolvendo esse tema. Elas precisam ser discutidas. E os abusos e excessos, regulados.
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