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Ensaio sobre a nossa cegueira

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Opinião

Ensaio sobre a nossa cegueira

Ficar discutindo o digital é muito raso e planejar qualquer estratégia de negócios limita o entendimento sobre as novas oportunidades


8 de abril de 2016 - 10h05

A raça humana passou por algumas mudanças profundas que mexeram na estrutura da vida das pessoas e na forma como elas enxergavam o mundo. A primeira grande transformação foi quando deixamos de ser caçadores para nos tornar agricultores. Milhares de anos depois, a sociedade baseada na agricultura se tornou industrial, mexendo com sistemas que são nossos alicerces, da família aos governos. Olhando para trás, é fácil identificar esses momentos e avaliar os impactos. Difícil é compreender que a humanidade está passando novamente por uma profunda transição, tão forte quanto as anteriores, e que mexe com os instintos mais profundos de nosso ser.

Nos últimos dez anos, vimos mais mudanças que nos mil anos anteriores. Empresas como Airbnb e Uber jamais poderiam ser imaginadas. Fazer pagamentos com app no celular? Impossível. Se pensarmos que a existência do mobile nas nossas vidas tem apenas 15 anos e que, dos grandes players originais como Nokia e Motorola, apenas a Samsung sobreviveu para hoje concorrer com Apple e Xiaomi, fica difícil negar que estamos passando por algo que está mexendo com o que antes era estabelecido.

Planejar estratégias de negócios é muito difícil, considerando que estamos no meio dessa transição. Por um lado, temos o mundo que herdamos e por outro lado temos um mundo emergente, cada dia mais relevante. O desafio para as empresas é criar estruturas ambidestras em que os dois mundos possam coexistir — e nas quais ela possa manter elementos do passado e investir no futuro.

Os principais propulsores dessa transformação são o crescimento exponencial da tecnologia e a digitalização dos domínios materiais. Ambos desafiam os modelos de negócios existentes, encurtando ciclos de vida de empresas e permitindo que, como diz Scott Galloway, renomado professor de marketing da Universidade de Nova York, uma nova economia liderada por Apple,Facebook, Amazon e Google conquiste mais relevância. Somadas, as empresas dessa nova economia já valem trilhões e têm um PIB equivalente ao do Canadá.

E elas tendem a crescer, já que o ritmo de disrupção permitiu que, só no ano passado, cem novas empresas passem a fazer parte do “clube do US$ 1 bilhão em valor de mercado”, elevando o número total de 44 a 144. Entre elas, a Palantir, criada por Peter Thiel, fundador da Paypal, com dez anos de atuação e valorizada hoje em US$ 20 bilhões. Sua nova oportunidade de negócios? Análise de dados para oferecer serviços de segurança na web para o governo e a iniciativa privada.

O que faz essas empresas do Clube do 1 Bilhão diferenciadas? Em primeiro lugar, compreendem que a transição pela qual estamos passando não se denomina “digital”, que é apenas um dos novos canais ou ferramentas. Ficar discutindo o digital é muito raso e planejar qualquer estratégia de negócios tendo-o como base limita o entendimento sobre as novas oportunidades. Essas empresas bilionárias entendem bem que os propulsores dessa transição estão criando mudanças no comportamento humano que as corporações estabelecidas no modelo anterior não conseguem acompanhar. Pior: não entendem que não se trata de entender de tecnologia, mas de comportamento humano.

A publicidade, a música e os jornais são indústrias que estão sentindo os impactos desta mudança mais cedo, mas não são as únicas. Educação, finanças e saúde estão na mira como as próximas grandes oportunidades de reinvenção nos modelos de negócios. Se você observar onde os grandes investidores estão colocando dinheiro, pode começar a enxergar que o setor de saúde está migrando de um modelo onde curávamos os doentes para um modelo onde operamos os saudáveis. A Moderna Therapeutics, empresa focada na criação de proteínas que melhorem nossa saúde, tem quatro anos de vida e já conseguiu investimentos de US$ 450 milhões no ano passado. É difícil entender as implicações disso, já que as mudanças vão acontecendo gradualmente — a começar pelos testes de sangue na farmácias e implantes de chips no lugar de anticonceptivos. A migração da era agrícola para a industrial não aconteceu em uma semana.

No mercado de publicidade, é normal que este momento de profundas transformações cause frustração e ceticismo, especialmente nas empresas bem estabelecidas no modelo anterior — e que continua gerando valor. Questionar ou destruir o que ainda funciona não faz sentido. Mas é preciso entender que viver no olho do furacão requer a coexistência de dois mundos, um comprovado e um emergente.

Há muitos esforços dos players tradicionais para dominar o lado da publicidade que chamam de “digital”, e das empresas emergentes pelo que chamam de “off-line”. Mas ambos estão cegos à realidade que vivemos. Embora não tenham fígado para descartar o que funcionou até agora, as agências precisam pensar em estratégias que contemplem espaços para testar como as coisas funcionam nesse novo mundo em construção. Não devem continuar gastando energia para justificar modelos de negócios ultrapassados só porque os modelos emergentes ainda não acertaram a fórmula. Se as antigas “verdades humanas” não estão sendo questionadas, não é possível sobreviver a essas transformações. A Accenture está tentando entender as ramificações dessa transição. As consultorias estão sendo desafiadas e adaptando seu modelo para as novas necessidades do mercado. Mas tampouco sabe- -se se estão fazendo o certo. Estamos no meio do furacão e o futuro está sendo criado agora.

Temos duas opções quanto a isso: reagir e dizer que não gostamos do que está chegando ou atuar para influenciar estas mudanças. É um processo difícil: sempre que se leva às empresas um projeto novo as perguntas são as mesmas: Quem já fez isso? Quem já conseguiu ser bem-sucedido? É difícil dar uma resposta quando se visa apenas resultados financeiros e não competências e aprendizados para criar o futuro. No modelo antigo, o cliente tinha sempre a palavra final. Mas não existem mais donos da verdade e a inteligência está na sala, com todos os envolvidos. É preciso atitudes e disposições, como de novos modelos de relacionamento que vão além das concorrências e da redução no fee mensal. Assim como as agências, os anunciantes precisam mudar.

É um momento único na história da humanidade e apenas daqui a uns 20 anos vamos poder olhar para trás e enxergar com alguma claridade o que aconteceu. E desejar ter tido a oportunidade de vivenciar esta época em que estão sendo redefinidas as novas estruturas do mundo. No final das contas, somos seres humanos incursionando por águas nunca antes exploradas.

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