Peças que não se encaixam

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Opinião

Peças que não se encaixam

Em uma ação com tema de matriz africana, chamar uma personalidade branca de destaque para estampar em primeiro plano essa peça é realmente a escolha adequada dentro de uma premissa que visa privilegiar a diversidade que a coleção se propõe?


4 de outubro de 2022 - 15h00

Crédito: Shuttestock / Arte M&M

Na semana passada, com um intervalo de apenas um dia, duas grandes marcas de moda ganharam destaque na mídia por conta de suas novas coleções, ambas com inspirações parecidas. A primeira, a C&A, em parceria com o Instituto C&A, lançou a coleção Identidades, assinada por estilistas negros e indígenas, que tem como premissa a celebração da brasilidade na moda. O projeto uniu as marcas Dendezeiro, Isaac Silva Brand, Nalimo e KF Branding, com quatro afroempreendedores que atuam no ramo de joias e bijuterias e estão entre 12 selecionados da segunda edição do Afrolab Moda by Instituto C&A, realizada este ano pelo Instituto em conjunto com a PretaHub: Azulerde, Tropicana, Adajo Aworan e Ímpar Ateliê.

A segunda marca em questão é a Arezzo, que desde o dia 19 de setembro colocou no ar, pelas suas redes sociais, peças de uma campanha comemorativa dos seus 50 anos, destacando novas leituras de modelos clássicos das últimas cinco décadas. Para representar os anos 1970, a empresa fez uma parceria com a marca de roupas Meninos Rei, de Salvador, que produziu calçados, de acordo com o perfil da Arezzo, com elementos que representem a cultura africana. Uma semana depois deste lançamento, no entanto, a iniciativa gerou diversas críticas nas redes sociais. O motivo é que, entre as modelos selecionadas para esta campanha está a influenciadora e empresária Jade Picon, que, nas fotos, apresenta a Anabella. As pessoas criticaram o fato de a Arezzo ter selecionado uma influenciadora branca para representar um produto que visa mostrar os elementos da cultura africana.

No texto-legenda, a empresa diz que a peça traz “elementos da cultura africana, com cores vibrantes e texturas marcantes”. Em outra foto de Jade, a marca diz: “Os @meninosrei trouxeram o patchwork para a nossa clássica Anabella que confere uma pegada artesanal e super divertida para a sandália. Destaque para o laço em tecido africano que faz alusão aos turbantes usados por mulheres africanas, que representam o poder e a beleza feminina. Uma verdadeira obra de arte”. Para representar as demais décadas, a Arezzo selecionou outros estilistas do Brasil e outras personalidades, incluindo mulheres negras. Nas coleções das outras décadas, no entanto, não há menção à estética africana nas peças.

Diante da repercussão negativa à escolha da modelo para representar exatamente a parte da coleção que remetia a elementos africanos, a Arezzo divulgou um comunicado no qual explicou que “uma das marcas colaboradoras deste projeto foi a Meninos Rei, dupla de estilistas pretos e baianos, que recriou um dos modelos mais conhecidos da Arezzo, a sandália Anabella, representada em campanha por duas vozes femininas brasileiras — Clara Buarque, atriz e cantora e Jade Picon, influenciadora e atriz. A coleção e campanha não foram construídas com o tema de homenagem a mulheres africanas, mas de uma representação dos 50 anos da Arezzo, com o DNA criativo de cada marca participante do projeto”, diz o comunicado.

O texto ainda complementa a informação: “Em toda a campanha de Arezzo 50 anos, estiveram presentes outras mulhe-res negras, como Sheila Bawar (modelo), Cecilia Chancez (cantora) e Malia (cantora)”. Vale ressaltar que a segunda modelo da polêmica peça dessa campanha, Clara Buarque, vem a ser filha de Carlinhos Brown, uma mulher negra que, no entanto, não aparece nas peças destacadas da coleção.

Olhando os comentários e trocas de mensagens em redes sociais e grupos de WhatsApp, a questão pontuada por muitos com relação à escolha da ex-BBB pela Arezzo como protagonista exatamente da parte da coleção que remete à cultura africana é que ela traz buzz, o que aumentaria o engajamento da campanha. Apesar de alguns saírem em defesa, afirmando que a campanha, em si, fala sobre os 50 anos da marca, há quem aponte a incoerência na escolha das representantes, por causa do conflito de narrativas.

Olhando o Relatório Anual da Arezzo & Co de 2021, companhia aberta que faturou R$ 3,6 bilhões e é composta, dentre outras, por marcas como Schutz, Fiever, Anacapri, Reserva e o licenciamento de Vans, no Brasil, além da própria Arezzo, há uma grande ênfase em práticas ESG, com destaque à certificação B. Só p-ra lembrar, as empresas B focam em um modelo de negócio que equilibra propósito e lucro, considerando o impacto de suas decisões em seus trabalhadores, clientes, fornecedores, comunidade e meio ambiente.

E aí vale uma reflexão das mais básicas: em uma ação com tema de matriz africana, chamar uma personalidade branca de destaque para estampar em primeiro plano essa peça é realmente a escolha adequada dentro de uma premissa que visa privilegiar a diversidade que a coleção se propõe?

Voltando à coleção da C&A, embora tenha pegadas e premissas diferentes da lançada pela Arezzo, dentro da estratégia de cada uma das empresas, ela dá pistas de como é necessário um olhar mais amplo de todo o processo: da concepção, à produção e, por fim, à comunicação. Todos os modelos da coleção Identidades são pessoas pretas.

No mundo da espetacularização, no qual uma imagem vale mais do que mil palavras, e no qual intencionalidade é uma palavra-chave, tanto pela escolha da modelo quanto pelo tom do comunicado, as peças foram definidas para causar impacto. Não parece ser por acaso que não se levou em conta que tipo de impacto seria esse.

Também não é por acaso que Clara Buarque, a outra modelo desta campanha, que é negra, porém não ganhou o protagonismo de Jade Picon, seja bisneta de Sergio Buarque de Holanda, autor de um livro fundamental para entender nosso País: Raízes do Brasil. A obra, de 1936, é uma interpretação original da decomposição da sociedade tradicional brasileira e da emergência de novas estruturas políticas e econômicas.

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