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Opinião

Proteção póstuma da imagem: inovação e ética

Caso emblemático da Volkswagen com Elis Regina ilustra vividamente como a inovação tecnológica pode desafiar conceitos éticos estabelecidos e PL 3.592/2023 pretende estabelecer diretrizes para uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio de Inteligência Artificial


27 de setembro de 2023 - 6h00

Em um mundo onde a inovação tecnológica avança em ritmo acelerado, o dilema entre progresso e ética se torna cada vez mais premente. No dia 19 de julho de 2023, foi apresentado o Projeto de Lei nº 3.592/2023, de iniciativa do Senado Federal, que estabelece as diretrizes para o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio de Inteligência Artificial (IA). Não há dúvidas de que o PL é uma reação direta a um episódio que gerou intensa discussão: a recente propaganda da montadora Volkswagen.

O comercial em questão ressuscitou, digitalmente, a icônica voz da cantora Elis Regina, em um dueto póstumo com sua filha, Maria Rita, para interpretar uma canção do saudoso Belchior. Para além do apelo emocional da canção interpretada, o caso evidenciou uma significativa lacuna legal sobre o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas, lacuna esta que o Projeto busca suprir.

O cenário atual revela uma omissão legislativa em relação ao uso de imagens e áudios de pessoas falecidas. A proposta do Projeto de Lei 3.592/2023 visa preencher essa lacuna, estabelecendo regras claras para o emprego dessas representações por meio de Inteligência Artificial.

Sob este aspecto, o Código Civil de 2002 se torna tema central. É que em seu artigo 20, há previsão de que a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação da imagem de uma pessoa pode ser proibida, se atingir sua honra, boa fama ou respeitabilidade, ou ainda se visar fins comerciais, salvo autorização ou necessidade legal. O parágrafo único prevê, ainda, que em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Perceba-se que o Código Civil prevê a possibilidade de proteção da imagem da pessoa falecida por seus herdeiros, mas não sobre a possibilidade de tais herdeiros disporem dessa imagem. E há um motivo muito claro para isso. O direito à imagem é um direito da personalidade, o qual, por definição, é intransmissível e irrenunciável, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária (artigo 11, CC/02).

Uma das pedras angulares do Projeto é a necessidade de consentimento póstumo, obtido de forma clara, inequívoca e documentada, para o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio de IA. A proposição estipula que esse consentimento seja obtido da pessoa quando em vida ou, em caso de ausência, dos familiares mais próximos. Isso visa preservar a dignidade e os desejos do falecido, além de garantir o controle dos herdeiros sobre o uso dessas representações.

Mas alguns questionamentos precisam ser levantados: e se não houver consenso entre os herdeiros? É necessário que exista unanimidade ou uma maioria simples poderia ditar os rumos da utilização da imagem do(a) falecido(a)? E se a imagem for utilizada para representar o(a) falecido(a) em situações que, em vida, iriam contra seus princípios? Isso pode ser interpretado como uma ofensa a sua honra, boa fama ou respeitabilidade? Supondo que a resposta seja sim: e se os herdeiros discordarem? A quem competirá defender os direitos da pessoa falecida nesse caso?

O caso emblemático da Volkswagen ilustra vividamente como a inovação tecnológica pode desafiar conceitos éticos estabelecidos. A possibilidade de recriar digitalmente a voz e a imagem de pessoas falecidas traz à tona questões sobre autenticidade, respeito aos desejos póstumos e exploração comercial. Do ponto de vista jurídico, a peça publicitária contou com o consentimento de um dos herdeiros da cantora e reproduziu apenas situações que a cantora, em vida, havia vivenciado, tanto que a projeção da imagem se baseou exclusivamente na sobreposição de imagens existentes. Do ponto de vista ético, trouxe polêmica: recriaram a imagem de uma cantora que era contra a ditadura militar brasileira para promover os produtos de uma empresa que, ao que tudo indica, apoiou o regime militar.

O Projeto de Lei em análise busca harmonizar essa inovação com princípios éticos e legais, conferindo aos herdeiros a prerrogativa de recusar o uso póstumo da imagem e da voz de seus entes queridos, ainda que tenham previamente consentido com tal utilização.

A proposta legislativa surge como uma resposta necessária, porém incompleta, a um mundo em transformação, onde a tecnologia desafia constantemente nossos valores éticos. À medida em que avançamos em direção a um futuro cada vez mais tecnológico, é imperativo que essas evoluções sejam moldadas por considerações éticas e legais, garantindo que a dignidade e os desejos dos falecidos e de seus herdeiros sejam protegidos, mesmo após sua morte.

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