Quarto, sala e briefing
Ou sobre as semelhanças entre uma reforma e as relações entre agências e anunciantes
Você acabou de pagar a última prestação do financiamento do apartamento. Agora ele é seu. Você anda pela casa repleto de orgulho, vislumbra cada centavo em cada detalhe daquele recanto que agora é seu no papel. Você para na entrada do quarto e consulta mentalmente um orçamento para começar a fazer a tão sonhada reforma.
Sim, a vida é assim mesmo: você fecha uma dívida e abre outra sem saber exatamente por quê. Talvez porque alguém lhe disse que as dívidas trazem um senso maior de responsabilidade e é isso que faz crescer o indivíduo. Você não concorda com a frase, mas a segue como uma folha de árvore solta na corrente do rio.
Aquele armário do quarto, que você nunca gostou, está com a morte decretada. Isso é batata, você pensa. E como quem guarda uma mania de abrir infinitas abas mentais, agora você está pesquisando no celular a origem dessa expressão, porque ficar sem a resposta não é uma possibilidade.
Eis a resposta copiada de algum site: “Já a expressão ‘é batata!’, usada quando algo é certo, tem duas possíveis origens: uma remonta à Idade Média, quando a batata era um dos alimentos mais valiosos e quando alguém a tinha para trocar, a negociação já era certa. A segunda hipótese sugere que quando agricultores puxavam a planta da terra e conseguiam apanhar batatas, eles exclamavam satisfeitos: é batata!”.
Você retorna para a realidade e lembra que tem uma amiga arquiteta que pode resolver esse quarto. Em poucos minutos, você refuta a ideia. Não deve haver maneira mais provável de terminar uma amizade do que colocar uma obra no meio dela, e você gosta da sua amiga arquiteta. Então, você resolve perguntar para uma outra amiga sobre a pessoa que fez o projeto da casa dela.
Afinal, você achou que naquele projeto havia um conjunto de ideias interessantes, uma mescla de soluções (que pareciam) simples, com uma peça de destaque – que deve ter sido cara – e uma harmonia em todo o conjunto que trazia um acolhimento só de entrar no recinto. Agora, você tem um arquiteto para conversar sem colocar em risco uma amizade. E vocês combinam uma conversa.
Tal e qual um publicitário, você “brifa” o arquiteto sobre o que imagina para o seu quarto. O armário com a morte anunciada é o primeiro tema. Vocês conversam sobre referências, estilos de decoração, uma ideia para uma cortina que não seja um abrigo de ácaros. Vocês riem sobre o uso de tapete em um quarto de uma pessoa com rinite alérgica, e relembram a existência de uma espécie de vassoura chamada de feiticeira.
Então, surge aquele hiato entre o fim da risada e a necessidade de encerrar aquela reunião. Você aborda o difícil tema do orçamento, mas isso lhe parece claro desde o início. Você separou o dinheiro e aprendeu com os clientes que isso é referente ao “ano fiscal”. O arquiteto parece compreender os valores. A conversa chega ao fim. Na porta, você faz uma piada com um tempo errado sobre a vassoura feiticeira. O arquiteto finge achar engraçado.
A espera pelo retorno do projeto não é curta, nem longa. É no tempo certo, no “timing”, para usar um famigerado anglicismo. Ansiedade, curiosidade, vontade de quebrar o armário ao meio e fazer uma fogueira na garagem com a madeira carcomida de cupim. Talvez não seja uma boa ideia a fogueira, diz uma das abas na cabeça. Talvez isso resulte em uma multa no seu condomínio deste mês.
O arquiteto abre o projeto na tela do computador, e o inesperado acontece: ele começa a discorrer sobre os detalhes da sala. Por um instante, você tem a sensação de estar ouvindo errado e já pensa em um possível diagnóstico de TDAH. Então, você vê o projeto todo da sala na tela e pensa que o do quarto deve ser mostrado na sequência.
A sala está fantástica. As soluções pensadas são incríveis. Tem mais espaço, mais luz entrando pelo ambiente, mais tudo o que você nunca pensou. Mas, mesmo assim, você pergunta: e o quarto? E o arquiteto fala que vai trazer na próxima reunião, porque ele focou este primeiro momento em redesenhar a sala. Ele cita a palavra disrupção, inclusive.
Incrédulo, você questiona: e o custo disso? Ele fala uma cifra que é basicamente o triplo do que você tinha separado como orçamento, e reforça que esse preço ainda é sem negociar com os parceiros. Você não sabe o que precisa dizer agora. Você lembra do cartaz “foi mal, eu tava doidão”.
Você pergunta se ele quer uma água, ele aceita. Na volta da cozinha, você tece uma resposta educada: muito obrigado por trazer essa visão sobre como seria a minha sala, mas na verdade eu preciso mesmo é refazer o quarto. Podemos marcar uma nova reunião? O arquiteto parece ficar desconfortável com o seu desdém pela sala, e marca uma nova data. Antes de sair, ele olha para a sala e pensa o quão equivocado você parece estar.
O tempo passa devagar como em uma segunda-feira. Você olha para o armário todos os dias. Você repensa a fogueira condominial. Até que você e o arquiteto se sentam frente a frente. Você está de bom humor, empolgado com o quarto. A primeira frase corta o seu humor: eu repensei a sala em termos de orçamento. Você evidencia um tique de nervosismo, ele percebe e acalma o ambiente: mas o que você vai amar mesmo é o projeto do quarto.
Só que tomado de uma alta expectativa, você se decepciona de leve. Como naquele filme que ganhou roteiro original no Oscar e todo mundo falou sem parar. Não é que não esteja bonito, mas o tempo parece ter comido feito cupim uma parte da sua empolgação. Você pensa que é coisa da sua cabeça, mais uma, e olha o projeto com a devida atenção. E consegue vislumbrar algo ali. Você entende o olhar do arquiteto.
A conversa ganha novos contornos e, uma hora depois, você percebe que está feliz. O orçamento é dentro da sua verba, vocês têm uma obra para começar. Antes de se despedir, o arquiteto olha para a sala novamente. Você diz: quando o quarto estiver pronto, pensamos na sala. Você fecha a porta, respira aliviado e pensa: os dias do armário estão contados. Isso é batata!
Moral da história: quando o pedido é de um quarto, você pode trazer a sala mais linda, que ela não resolve o problema. Vale para o quarto, vale para um briefing de campanha. Quando você quer uma sala, mas pede um quarto, é metáfora para outro texto, mas acontece também.