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A representação feminina na publicidade e seus estereótipos

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A representação feminina na publicidade e seus estereótipos

Qual é a responsabilidade das agências e das marcas ao retratar mulheres em suas campanhas? 


1 de fevereiro de 2024 - 11h50

O que te vem à mente quando pensa em uma peça publicitária de margarina? E num filme para uma empresa automobilística? Qual papel uma mulher ocupa nesses dois cenários? O senso comum diria que a representação feminina em campanhas publicitárias mudou bastante entre as décadas. Entretanto, dados mostram que, na verdade, ainda vemos vestígios das peças clássicas de décadas atrás, que ilustravam a mulher como “dona do lar” ou mãe.  

Apesar de estarem em 88% das campanhas publicitárias, as mulheres são representadas como esposas de alguém em 30% das peças, ou como mães e avós em 26%. Em comparação, em apenas 3,6% elas eram atletas, em 3,4% eram profissionais de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) e em 2,5% eram donas de negócios. As personagens femininas também apareceram muito mais na cozinha (30%) do que no trabalho (14,6%), no carro (17,5%) ou na sala de aula (1,8%). Os dados são do estudo do movimento SeeHer e da Ipsos, publicado em 2022.  

“Embora haja um movimento em direção à inclusão, percebo que ele é relativamente pequeno diante da quantidade massiva de anúncios veiculados diariamente”, avalia Gláucia Montanha, CEO da Artplan São Paulo e da Convert Digital Business. 

A problemática é ainda mais profunda. Existe uma tendência de simplificar e achatar as personagens femininas, desfazendo-se de suas contradições e ambiguidades. Apesar do recurso facilitar o processo criativo, ele também é responsável por perpetuar papéis estereotipados.  

O que é uma mulher? 

Para entender como nascem e se reproduzem tais estereótipos, precisamos dar dois passos para trás e revisar os vieses inconscientes que estão ditando as decisões criativas. “É importante destacar que o entendimento do que é ser mulher é distinto do que é ser homem em muitos aspectos, refletindo-se em padrões estéticos e sociais que merecem uma revisão mais profunda”, reflete Liliane Rocha, fundadora e CEO da Gestão Kairós, consultoria de diversidade e inclusão. 

Liliane Rocha, CEO e fundadora da Gestão Kairós: “O entendimento do que é ser mulher é distinto do que é ser homem em muitos aspectos, refletindo-se em padrões estéticos e sociais que merecem uma revisão mais profunda” (Crédito: Nicola Labate)

São diferentes fatores que contribuem para a falsa, irreal e simplista representação feminina em peças publicitárias: o histórico-cultural do lugar da mulher na sociedade, a resistência em retratar contradições, a facilidade de se reproduzir arquétipos pré-estabelecidos ou até mesmo a falta de curiosidade e interesse de se aprofundar em personagens femininas. Seja qual for a razão, o resultado será sempre negativo, tanto para elas quanto para os anunciantes.  

“Ao retratar mulheres de forma fragmentada, as marcas correm o risco de se desconectar do público que desejam alcançar”, adverte Marina Pires, Managing Director do escritório da Media.Monks em São Paulo. 

“Em termos de avanço civilizatório da publicidade e propaganda, noto que não ocorrem mais absurdos, como uma campanha publicitária que recordo envolvendo a decisão de ‘deixar o ‘não’ em casa’ [Deixei o não em casa, para Skol, Ambev, 2015]. Esse tipo de abordagem é agora considerado totalmente inadmissível”, lembra Liliane Rocha.  

Ainda assim, situações problemáticas acontecem com certa frequência. “Recentemente, acompanhei um caso em que uma estátua de um produto de limpeza causou escândalo por ter a mão de uma mulher negra [Ypê, Quimica Amparo, 2023]. Isso evidencia como a representação ainda é um desafio em determinados setores”, destaca a especialista. 

Mulheres brasileiras são plurais 

Para além da falta de representação de papéis diferentes que as mulheres são capazes de desempenhar, também existe uma escassez de corpos, cores e belezas distintas. “Falta, a meu ver, a inclusão de pessoas reais, com diferentes tonalidades de pele e origens étnicas. A publicidade muitas vezes se limita a um tipo de beleza”, argumenta Gláucia Montanha. 

O ideário, segundo as entrevistadas, restringe-se a um tipo de corpo feminino: a mulher branca, magra e de ascendência europeia. Um padrão muito longe da realidade das brasileiras. “Quando observo comerciais, principalmente em lojas de jóias, noto a falta de representação de mulheres negras. Até mesmo em empresas renomadas no segmento automotivo isso se repete”, afirma Liliane Rocha. “Isso se torna uma forma de violência contra a mulher, pois não reflete a verdadeira pluralidade da sociedade, exclui diversas identidades e perpetua padrões prejudiciais”, continua. 

“Falta, a meu ver, a inclusão de pessoas reais, com diferentes tonalidades de pele e origens étnicas. A publicidade muitas vezes se limita a um tipo de beleza”, diz Glaucia Montanha, CEO da Artplan São Paulo e da Convert Digital Business (Crédito: Vitor Cohen)

Parte das agências a necessidade de se alimentarem de representações distintas e reproduzi-las em suas peças. “É fundamental criar um ciclo virtuoso, onde os exemplos da vida real influenciam a indústria, e esta, por sua vez, destaca e amplifica esses exemplos”, argumenta Marina Pires. 

Representar corpos distintos não apenas valida suas existências, mas também muda a percepção pública sobre os lugares em que eles transitam e pertencem. “Ao normalizar a presença de diversos corpos, ao longo do ano e em diferentes campanhas, não somente durante eventos específicos, cria-se uma mudança real na narrativa da comunicação”, aponta Liliane. 

O papel das agências 

Em sua trajetória de 20 anos na indústria publicitária, a diretora da Media.Monks percebe avanços nas agências, que em sua maioria assumiram a responsabilidade e se posicionaram diante de questões como essa. Entretanto, ainda existe resistência para uma mudança mais radical. “É essencial reconhecer que mudar o discurso é mais fácil do que transformar valores e comportamentos. Embora tenhamos domínio sobre o discurso nos meios de comunicação, há um ciclo que precisa ser retroalimentado”, diz. 

O primeiro gargalo a ser trabalhado é a inclusão de mais mulheres no processo criativo. ”Um diagnóstico mais aprofundado revelou que, apesar da aparente igualdade de gênero no quadro funcional das agências, as mulheres não ocupam posições estratégicas e criativas em proporção adequada”, ressalta Liliane Rocha, responsável, juntamente com o Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP), pela publicação do relatório “Publicidade Inclusiva: Censo De Diversidade Das Agências Brasileiras ODP 2023”. 

De acordo com o levantamento, 85% dos cargos de CEO das agências de publicidade são ocupados por homens, enquanto as mulheres representam apenas 15%. Já segundo a pesquisa da More Grls, em 2020, elas ocupavam apenas 25% do total de profissionais da área de criação, enquanto os homens eram 75% dos líderes do departamento. 

A falta de presença feminina na alta liderança, tanto das agências quanto da área criativa, reflete diretamente no resultado final das campanhas. “Primeiramente, devemos observar os papéis que as mulheres desempenham na estrutura da agência e como estão conectadas a desafios em que a representação feminina é crucial, como em campanhas de carros ou produtos específicos para mulheres”, destaca Marina. “Por último, é fundamental dar mais espaço para que as mulheres, incluindo profissionais em posições como a minha, possam se mostrar de maneira global e multidimensional”. 

A inclusão feminina na alta liderança, logo, não se limita apenas à meta de “fazer número”, mas ela é também responsável por promover uma mudança de cultura. “Para mim, é crucial reconhecer o papel da publicidade, que vai além de aquisição e construção de marca. Estamos, de fato, moldando comportamentos e formando valores”, destaca Gláucia Montanha. 

Nesse sentido, os anunciantes são co-responsáveis nas mensagens veiculadas. “Acredito que o papel das marcas é reconhecer que são vetores de inspiração e de geração de talento e desejo. Se estamos trabalhando para construir um mundo mais sustentável e inclusivo, as marcas devem liderar o caminho”, reforça Marina. 

O engajamento das marcas ainda está evoluindo, e depende muito do nível de maturidade do cliente nessa questão. Entretanto, hoje, as lideranças concordam que existe mais abertura para essa discussão. “A evolução nesse sentido é notável quando comparada a anos atrás, quando expressar tais preocupações poderia resultar em mudanças de conta ou pedidos para não participar de determinadas reuniões”, conta Gláucia. 

Por mais dados concretos 

Para além da mudança no corpo profissional, incluindo mais mulheres em cargos de liderança, sobretudo nas áreas criativas, o mercado pode ser mais proativo para analisar o tema. “É fundamental promover estudos mais frequentes e atualizados sobre a inclusão de mulheres em campanhas publicitárias”, avalia Gláucia. 

“Além disso, sugiro uma revisão nas pesquisas, eliminando a classificação da mulher apenas por gênero. Devemos ter perfis mais detalhados, focados não apenas em dados demográficos, mas também em aspectos comportamentais e atitudes. Isso ajudaria a compreender melhor como as mulheres se posicionam nas pesquisas e na sociedade”, propõe a CEO. 

O avanço necessita de dados mais frequentes, mas também de espaços abertos para o diálogo. O intuito não é apenas aumentar o número de mulheres em peças ou no quadro de lideranças, mas, sim, mostrar que elas são diversas, amplas e esféricas, com suas discrepâncias e contradições.  

“Infelizmente, ainda é considerado inovador e excepcional incluir uma variedade de mulheres em campanhas publicitárias”, reflete Liliane. “Ter apenas um tipo de mulher representando a totalidade feminina ainda é visto como natural, mas acredito que daqui a cinco anos não será mais.”

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