Arte de pacientes psiquiátricos move negócio de Raiana Pires
Fundadora da Psicotrópica fala sobre como surgiu a ideia de estampar obras de artistas da rede de saúde mental em suas roupas

Raiana Pires é fundadora da Psicotrópica e do projeto Surto Criativo (Crédito: Divulgação)
Raiana Pires é formada em serviço social e sempre foi interessada pelas questões relacionadas à saúde mental. Ao estudar Nise da Silveira, psiquiatra brasileira pioneira no desenvolvimento da arteterapia, começou a participar de oficinas de arte com pacientes psiquiátricos e encontrou ali um grande potencial artístico que ela transformaria em estampas para sua marca de roupas, a Psicotrópica. Assim, surgiu o Surto Criativo, projeto que trabalha com pacientes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e que transforma suas obras artísticas em estamparia de moda.
Surto Criativo não apenas oferece oportunidades valiosas de geração de renda para os artistas envolvidos, mas também disponibiliza uma plataforma de visibilidade para suas criações originais. As coleções da Psicotrópica são produzidas em pequena escala, com costureiras mulheres de pequenas cooperativas, com foco na exclusividade e no artesanato.
Nesta entrevista, Raiana Pires fala sobre a criação da marca e do projeto, e também sobre o poder da arte para a emancipação e para a autoestima dos artistas da rede de saúde mental.
Meio & Mensagem – Pode falar um pouco sobre sua carreira? Como surgiu a Psicotrópica?
Raiana Pires – Minha formação é em serviço social e, no meu estágio, percebi algo muito rico nesse universo dos pacientes psiquiátricos, que ia além do tratamento clínico. Vi como essas vidas estavam atravessadas pela medicalização, mas também identifiquei um potencial artístico muito forte ali. Muitas vezes, a linguagem dessas pessoas não era a verbal, mas sim uma linguagem artística, uma outra forma de expressão. Comecei a desenvolver várias oficinas com os pacientes e fui estudar a Nise da Silveira, psiquiatra que revolucionou o sistema de saúde mental no Brasil com tratamentos baseados em arte. Então, fui incorporando essa dimensão artística na minha vivência de estágio. Em paralelo, eu já tinha a marca Psicotrópica, que, no início, era um blog, onde eu trazia referências artísticas, estudava a loucura e começava a misturar tudo isso com referências de moda.
M&M – E como a Psicotrópica passou a ser uma marca de moda?
Após me formar, passei a trabalhar com moda, e aí surgiu a ideia de juntar toda essa experiência com saúde mental à minha atuação. Acho que essa foi a grande chave. Hoje, falamos muito sobre moda como ponte para transformação social, e a gente trabalha com a inclusão de pacientes psiquiátricos nesse processo. O nome do projeto é Surto Criativo, e criei ele a partir de uma curadoria e pesquisa em instituições psiquiátricas no Brasil que desenvolvem trabalhos com arte. Busco locais onde existam ateliês e produção artística por parte dos pacientes. Mas a Psicotrópica também fornece parte desse material, com apoio de marcas como a Suvinil. Estou sempre buscando desenvolver parcerias para levar insumos para essas instituições. E, a partir dessas criações, transformamos as obras em estampas. A ideia do projeto é justamente dar protagonismo a essas pessoas e trazer visibilidade para uma pauta que ainda é cercada de tabus: a loucura e a saúde mental.
M&M – Houve algum momento ou encontro marcante que mudou sua trajetória em relação ao projeto?
Raiana – Temos uma estampa icônica da marca, que é a Festejo. Ela já está com a gente há sete anos e nunca saiu de linha porque vende muito. Ela chegou a viralizar, alcançou gente como Gilberto Gil e Fátima Bernardes, e foi pintada por uma artista da saúde mental, a Maria Alice. A história dessa estampa é muito simbólica e carrega uma transformação social real. A Maria Alice era empregada doméstica e estava em uma depressão profunda há anos. Ela começou um tratamento no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), onde participava das oficinas artísticas. Em uma das minhas visitas de pesquisa a essa instituição, encontrei a Maria Alice pintando. Quando a vi, falei: “Nossa, que coisa mais linda, Maria Alice. Isso aqui pode virar uma estampa, acho que daria super certo”. Foi aquele olhar mais curatorial mesmo, pensando tanto no artístico quanto no comercial, porque nem tudo funciona para virar roupa. À época, ela mal falava, estava sempre de cabeça baixa, muito angustiada. E aí começou esse trabalho de criação de vínculo, que é essencial: entender a realidade dessas pessoas e criar proximidade. Estampamos essa pintura e nasceu a Festejo. A Maria Alice é baiana e trouxe muito da cultura do São João e da brasilidade para essa estampa. Acho que isso fez a estampa viralizar: ela carrega uma identidade brasileira muito forte.

Maria Alice, criadora da estampa Festejo, da Psicotrópica (Crédito: Divulgação)
A gente transformou essa arte em uma padronagem e, desde então, reproduzimos a Festejo todos os anos com outras cores e as clientes adoram. No ano passado, Maria Alice recebeu um prêmio na Câmara dos Deputados de São Bernardo, onde ela mora, em reconhecimento ao trabalho artístico dela. Hoje, ela reformou a casa e conseguiu sair de um trabalho e de um relacionamento abusivo. A partir do momento em que ela foi reinserida nesse círculo econômico, e ganhou visibilidade e protagonismo, desabrochou. Voltou a falar e hoje é outra pessoa. Costumo dizer que ela conseguiu transformar a dor em criatividade. Todo aquele sofrimento virou expressão e autonomia. Virou uma história que ressignificou a própria trajetória dela.
M&M – Quais desafios você enfrentou para empreender?
Raiana – Acho que o maior desafio foi conseguir unir o idealismo com a prática. Quando a gente empreende, tem sempre um porquê, um propósito, alguma mudança que quer provocar. E o desafio é justamente fazer essa ponte entre o sonho e a realidade. Quando criei o Surto Criativo, imaginava trabalhar com 300 artistas, fazer coleções imensas, mas, na prática, percebi que não é bem assim. Talvez você acabe trabalhando com menos artistas, mas consegue gerar impacto real com essas poucas pessoas. É um jogo de cintura constante: estar dentro de um sistema comercial, com regras econômicas, sem perder o propósito.
M&M – Na sua opinião, qual o papel da arte como ferramenta de expressão para pessoas em sofrimento psíquico?
Raiana – Costumo dizer que a arte vai muito além da terapia. Claro, ela tem esse poder terapêutico, e acho que era isso que a Nise propunha, mas ela pode ir além disso. A arte tem o potencial de colocar a pessoa como sujeito da própria história. A partir do momento em que alguém cria algo, quando se coloca nesse lugar de criador, começa a se ver como autor da própria trajetória. E isso tem muito a ver com emancipação humana, com transformação. É ver o sujeito inserido, ativo, presente. A Nise, em seus livros, fala muito sobre essa organização psíquica que a arte proporciona. Quando você está ali pintando, por exemplo, uma mandala, você está organizando psiquicamente sua mente. Então, sim, a arte tem esse papel terapêutico, mas vejo também esse outro lado, de inserção e pertencimento. Principalmente para essas pessoas, que enxergam e se expressam de forma diferente. A sociedade tende a excluir tudo que é diferente, com esse olhar higienista, de empurrar para longe, e acredito que a arte pode ser um canal de comunicação com o mundo, com o outro, com o externo.
M&M – Como a criação dessas estampas impactam a autoestima dos artistas?
Raiana – O que acho mais potente nesse trabalho é justamente o impacto que tem na vida dessas pessoas, principalmente na autoestima. Isso está muito ligado à emancipação social. A pessoa começa a se enxergar de outra forma, percebe que tem um potencial, que também é produtiva. O que acontece com a saúde mental é que, a partir do momento em que alguém é diagnosticado como “louco” ou internado num hospital psiquiátrico, é como se recebesse um carimbo de incapaz. Fica fora do círculo produtivo, muitas vezes passa a viver de benefícios e até se aposenta cedo. Então, quando você traz a arte para esse contexto, ela devolve a autoestima. Aconteceu com a Maria Alice: a arte colocou ela em outro lugar. A pessoa passa a se ver diferente, entende que tem uma potência criativa dentro dela. A arte e a cultura têm um papel enorme na autoestima dessas pessoas. Quando trabalhei nos CAPS, por exemplo, a gente organizava saídas para museus, cinema, e levava essas pessoas para os centros urbanos, para ocuparem espaços dos quais costumam ser excluídas. E quando elas se veem nesses lugares, percebem que são cidadãs, que têm direito de estar ali. Esse movimento é uma reinserção. E a partir do momento em que isso acontece, a autonomia e a autoestima começam a surgir.
M&M – Como acontece o desenvolvimento criativo desses artistas?
Raiana – O desabrochar criativo está sempre muito ligado à fase que a pessoa está vivendo. Por exemplo, recentemente, eu estava trabalhando com um artista que retrata muito o próprio rosto. Mas, ultimamente, ele tem pintado esse rosto de forma muito escura, com manchas, cores pesadas, um traço mais caótico. E aí, conversando com ele, ele falou que está passando por vários processos. Então, é colocar para fora uma dor, uma alegria, o que estiver sentindo. Já teve também uma época em que copiaram a estampa Festejo, e isso chegou até a Maria Alice, a autora. Algum tempo depois, ela me mandou uma nova pintura da Festejo, mas em uma versão escura, super caótica. E eu pensei: “nossa, isso abalou ela emocionalmente a ponto de aparecer na obra”. Esse desabrochar criativo está muito conectado ao que a pessoa está vivendo naquele momento, mas também tem muito a ver com transformar a dor em criatividade. Eles têm esse poder, sabe? É quase como uma transmutação. Para superar algo, você precisa colocar para fora, e a arte é esse caminho.
M&M – O trabalho com cooperativas de costureiras é um diferencial da marca. Pode contar mais sobre essa escolha?
Raiana – Quando comecei a trabalhar com roupa e costura, visitei algumas fábricas grandes, mas nunca acreditei naquele modelo. Me incomodava muito não saber exatamente quem estava costurando a peça. Às vezes mandavam para fora, podia ser costurada por bolivianos ou colombianos, não dava para saber. Isso sempre mexeu muito comigo. Eu pensava: “Não dá, não acredito nisso, vou ter que buscar outra forma”. E aí, depois de um tempo, encontrei uma cooperativa em São Bernardo. Na verdade, eram três costureiras que costuravam no fundo de casa. Cheguei e propus fazermos as peças da Psicotrópica com elas. Assim, fomos trabalhando juntos e crescendo. Então, à medida que a marca cresce, essas mulheres que estão por trás do processo também crescem junto.
M&M – O que diria para quem deseja empreender com propósito social?
Raiana – Acho que é muito sobre bater o pé. Já tomei muito “não” ao longo da minha trajetória. Se a gente não insiste e não acredita de verdade no que está fazendo, acaba desistindo no meio do caminho. Quando você tem um ideal, ele serve como um norte para o trabalho. Como falei, existe o idealismo e a prática. E o idealismo é importante porque nos move. Tem uma frase muito legal do Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Quando a gente empreende, temos que ter esse ideal muito forte, que muitas vezes se conecta com o propósito. Porque é isso que vai te manter de pé. Quando você pensar em desistir, vai lembrar: é por isso que estou caminhando.