De Olinda à França: como Lu Araújo internacionalizou o Mimo Festival
Com 21 anos de estrada, a fundadora criou um festival de música gratuito que nasceu no Nordeste e se expandiu para a Europa
De Olinda à França: como Lu Araújo internacionalizou o Mimo Festival
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Lidia Capitani
28 de maio de 2025 - 9h24
Lu Araújo, fundadora e CEO do Mimo Festival (Crédito: André Henriques)
Lu Araújo é fundadora e CEO do Mimo Festival, evento gratuito de música e cultura que já soma mais de 21 anos. Criado em Olinda, o festival se espalhou por cidades do Brasil e de Portugal. Em 2025, depois de um hiato de seis anos, terá edições em Olinda, Rio de Janeiro, São Paulo e Amarante (Portugal), entre julho e setembro. A novidade do ano é a Temporada Cruzada Brasil-França, que celebra 200 anos de relações entre os países com um intercâmbio cultural: músicos brasileiros tocarão no festival Jazz in Marciac, realizado na região da Occitânia, na França, e artistas franceses se apresentarão no Mimo.
Mais que gratuito, o festival, que este ano conta com patrocínio da Stone e da Oi Futuro, se destaca por ocupar espaços históricos e por misturar gêneros como música clássica e popular. À frente do projeto está Lu Araújo, paulista de nascimento e carioca de criação, que cresceu cercada de arte: o pai era dono de loja de discos e, o tio, fotógrafo. Nos anos 1980, abriu sua própria loja de discos independentes brasileiros, a Independente Discos, desafiando o domínio das grandes gravadoras.
À época, convivia com muitos músicos independentes e se surpreendia com a desorganização na produção. Começou então a atuar como empresária e produtora de nomes como Elza Soares, João Nogueira, Zeca Baleiro e Chico César. Com a crise do mercado fonográfico, Lu sentiu que era hora de criar algo autoral. Foi assim que nasceu o Mimo, de uma vontade de criar algo do zero que mostrasse o valor da música e da cultura.
Nesta entrevista ao Women to Watch, Lu compartilha como o festival nasceu e se internacionalizou. O que começou quase sozinha, em meio a incertezas, se tornou um dos eventos culturais mais importantes do Brasil e de Portugal, somando mais de 2 milhões de pessoas em duas décadas.
Meio & Mensagem – Como surgiu o Mimo Festival?
Lu Araújo – O Mimo começou a ganhar forma em 2003, durante uma viagem de trabalho no Carnaval de Recife com Zeca Baleiro. Em uma noite em Olinda, presenciei uma cena que me marcou: um grupo jogou uma garrafa contra a porta da Catedral da Sé, sem respeito pelo patrimônio histórico da cidade. Fiquei incomodada com aquilo, afinal, Olinda é tombada como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Foi daí que surgiu a ideia de criar um festival que valorizasse esses lugares de forma consciente, não só artística ou religiosa. Minha amiga achou que eu estava louca, mas um ano depois eu já inaugurava o Mimo. Para a estreia, consegui trazer Nelson Freire, maior pianista brasileiro, que vivia na França, para tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife. Eu estava muito apreensiva, sem saber se viria a ter público, mas quando cheguei, uma hora antes do concerto, tinha uma fila imensa. A igreja ficou lotada e teve gente que ficou de fora. Como era um concerto de música clássica, eu não queria ninguém em pé ou fazendo barulho, e cometi um erro de principiante, que nunca mais repeti: fechei a porta da igreja. Mas as pessoas começaram a bater: “Abre! Abre!”. Parecia um show dos Beatles. Desde então, nunca mais fechei a porta de um concerto.
M&M – Já são duas décadas de festival. Como ele cresceu e se consolidou?
Lu – Desde a primeira edição, o festival cresceu ano após ano. Nos quatro primeiros, acontecia apenas em igrejas, museus e casas, com música clássica, exibição de DVDs, debates, e até distribuição de discos por Olinda. Passamos a montar telão e som do lado de fora dos espaços, o que virou uma marca do festival em Olinda, com plateias acompanhando mesmo do lado de fora. O público sempre foi mais adulto, por causa da música instrumental e clássica. Mas, com um show do Hermeto Pacoal, notei o interesse de jovens e isso me atraiu. Queria que o público crescesse junto com o festival, então ampliei a programação. Em 2009, trouxemos uma grande atração: Buena Vista Social Club. A partir daí, o público aumentou e passei a trazer nomes internacionais, o que não era fácil, pois os artistas só conheciam Rio e São Paulo. Para viabilizar, comecei a articular apresentações também em Recife e João Pessoa.
Em 2012, o festival já era maior, mas os recursos não acompanharam. Sem bilheteria e com patrocínio limitado, busquei empresas, mas elas me diziam que os aportes estavam concentrados em São Paulo. Lá, afirmavam que não havia verba para a minha praça. Decidi expandir para o Sudeste e escolhi Ouro Preto, viabilizando a edição por meio de um edital da Natura. A partir de 2013, essa expansão ajudou a reduzir a dependência do setor público e atrair apoio privado. O BNDES entendeu o valor do festival, já que sempre apoiou o patrimônio histórico, e firmamos uma parceria durante onze anos. Depois, veio o Bradesco, que apoiou por seis anos, em um momento essencial de reestruturação. A partir de 2015, passamos a crescer uma cidade por ano, com edições em Recife, João Pessoa, Ouro Preto, Paraty, Tiradentes e Rio de Janeiro, mas sempre mantendo o mesmo conceito: gratuito e em lugares históricos.
M&M – Como aconteceu a internacionalização do festival?
Lu – Em 2016, dei início à internacionalização do festival. A ideia surgiu em 2014, quando o Mimo completou 10 anos e me perguntei qual seria o próximo passo. Resolvi arriscar, mesmo achando meio insano enfrentar festivais gigantes lá fora. Mas, em viagens e visitas a feiras e eventos, percebi que valia tentar, porque eu tinha um formato singular. A maioria dos festivais lá fora é bem segmentada. Poucos reúnem tantos gêneros como o Mimo, que vai da música clássica à eletrônica. E se já era forte por aqui a proposta de ocupar patrimônios históricos, imagine o impacto disso na Europa. Em 2015, vim para Portugal, e montei uma empresa com um capital inicial de 100 euros. Em 2016, fiz a primeira edição, com recursos 100% de Portugal. No primeiro ano, fiquei entre fazer numa cidade grande, o Porto, e numa cidade pequena, mas acabei escolhendo Amarante. É uma cidade na região norte, sem tradição, que estava se reerguendo após uma crise que o país passou no período. Ela fica no Caminho do Douro, o rio que perpassa a região, e foi onde viveu São Gonçalo, sacerdote português. Além disso, a cidade tem uma doceria conventual, uma comida maravilhosa e um hotel com restaurante estrela Michelin, mas estava abandonada. Foi uma escolha certeira. No primeiro ano, levei 26 mil pessoas. No ano seguinte, 2017, foram 60 mil. Em 2022, recebi um convite para fazer o Mimo no Porto e coloquei 150 mil pessoas na cidade durante três dias. No ano passado, voltei para Amarante e estou lá até hoje. Agora, também estou voltando para a cidade onde tudo começou: Olinda.
M&M – A que você atribui a vida longa do festival?
Lu – O Mimo é um festival essencial, e claro, tem muito do meu empenho, da minha liderança e garra. Mas ele vai além de mim. Sempre quis provocar o público, fugir do óbvio, trazendo artistas do mundo todo que normalmente não teríamos acesso. E há um equilíbrio entre qualidade e gratuidade. Se fosse pago, custaria caro, mas o valor real está em oferecer cultura com respeito e diversão para todos. A gratuidade faz o público se sentir parte do festival. O Mimo virou uma marca forte no Brasil e em Portugal, criando um movimento natural: o público quer ir, os músicos querem tocar e a imprensa acompanha. Isso mostra a força que vem da verdade do projeto, da música e do acesso gratuito. Também tem a marca de ter começado no Nordeste e alcançado espaço no eixo central. Claro que deu frio na barriga, mas quando escolhi Amarante em vez do Porto, já sabia que era possível, porque tinha feito esse caminho no Brasil. É uma mistura de persistência, construção e compromisso com qualidade.
O Mimo tem muita entrega e dedicação. Não tem glamour, porque não sou artista, sou produtora. O que me move é o amor pela música. Já trouxe nomes como Jacob Collier e Ibrahim Maalouf ao Brasil antes de se tornarem gigantes, e revelei talentos como Amaro Freitas. Então, o festival também é esse espaço de descoberta. Gosto de misturar. Já coloquei um show de heavy rock antes do BNegão no mesmo palco e funcionou. Criar contrastes é essencial. Hoje, vejo tudo muito engessado. Mas a gratuidade e meu espírito inquieto me deram liberdade para ousar, sem depender da bilheteria. Assim, pude apresentar artistas incríveis e surpreender o público com novas experiências.
M&M – Como é a relação do festival com as marcas? Que tipo de marcas vocês procuram se conectar e como vendem o festival para esses parceiros?
Lu – Durante muito tempo, precisei explicar o que era o Mimo Festival, porque não havia nada parecido. Hoje, sinto que ele já chega com reconhecimento, mesmo que não seja prioridade para algumas empresas. O Mimo desenvolveu relacionamento com marcas no campo cultural, especialmente com instituições financeiras. Já contou com apoios como BNDES, Bradesco, Itaú, Cielo, Petrobrás e, mais recentemente, a Stone. Mas nunca foi um festival cheio de marcas. Em um mundo tão instável, a cultura deveria ser uma prioridade. Enquanto surgem discursos contrários à gratuidade, sigo defendendo o acesso cultural como algo essencial, especialmente no Brasil. Eu mesma cresci num lugar sem acesso à cultura, e foi sonhar que mudou minha trajetória. Tento devolver isso, abrindo caminhos para outras pessoas. O Brasil é imensamente rico em cultura. Investir para que as pessoas tenham acesso a isso é urgente. Me entristece ver festivais caros que perdem o foco na música. As marcas, muitas vezes, buscam o óbvio, mas sigo fazendo o Mimo, ano após ano, há mais de duas décadas, com exceção da pandemia, sempre acreditando na potência da cultura.
M&M – Este ano, vocês farão parte da Cruzada Brasil-França. Como surgiu essa iniciativa e como ela se conecta com o Mimo Festival?
Lu – Este ano, o Mimo vive um momento inédito com sua participação em Jazz in Marciac, o que marca um avanço no reconhecimento internacional do festival. Assim como muitos artistas brasileiros querem vir para a Europa, muitos artistas estrangeiros também querem se apresentar no Brasil, porque o país é um mercado atrativo, e o Mimo chama atenção nesse cenário. Já havíamos colaborado com o Jazz in Marciac, um dos maiores festivais de jazz do mundo, que também nasceu em uma cidade minúscula e hoje atrai 100 mil pessoas por ano. Em 2025, retomamos essa parceria e fazemos parte da Temporada França-Brasil, que surgiu a partir de um convite da Embaixada da França. Assim, o Mimo assina a curadoria de quatro noites no festival, com nomes como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Amaro Freitas e Hamilton de Holanda, além de apresentações no festival paralelo Bis, com Carlos Malta & o Pife Muderno e Andrea Ernest Dias. Em troca, o Mimo recebe quatro artistas franceses. É um verdadeiro intercâmbio cultural, que despertou muito interesse do mercado. O apoio financeiro é pequeno, mas o impacto tem sido enorme. E a sensação que tenho é que estamos só no começo. Quando o Mimo chegou a Ouro Preto, já tinha quase dez anos. Agora, são mais dez de história e, com isso, mais parcerias começam a se abrir.
M&M – Como é ser uma mulher à frente de um festival de música?
Lu – Tenho muito orgulho de ser um festival brasileiro que abre espaço para nossos artistas e projeta a música brasileira no exterior. Mas o Mimo também é um negócio que construí sendo mulher, o que ainda é raro em Portugal. Ser mulher influenciou profundamente o que construí. Liderar equipes majoritariamente masculinas não é fácil, mas fui mudando esse cenário. Em 20 anos, formei muitas mulheres na produção e sempre busquei diversidade de gênero na programação, isso está no DNA do festival. Hoje, não vejo mais como uma busca por equilíbrio, é algo natural no meu processo. Tenho pesquisado e incluído cada vez mais artistas mulheres. Este ano, por exemplo, a primeira noite do Rio será toda feminina. Além disso, incentivo minha equipe a incluir mais mulheres em funções técnicas, que normalmente são masculinas. Liderar o Mimo sendo mulher me enche de orgulho. Enfrento machismo, desafios e até desrespeito, mas nunca recuei. Faço do festival um espaço de visibilidade e inclusão, tanto na programação, quanto nos bastidores.
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