Inspiração

Adriana Alves: “A inclusão é necessária, mas não resolve”

Executiva e conselheira reconstrói vivências, dores e códigos ocultos para mostrar como transformar diversidade em prática real nas empresas 

i 19 de novembro de 2025 - 15h32

(Crédito: Divulgação)

Adriana Alves, conselheira e fundadora da consultoria Lupa (Crédito: Divulgação)

Executiva, conselheira e voz influente na agenda de diversidade e bem-estar no trabalho, Adriana Alves acaba de lançar a Lupa, consultoria estratégica em cultura, reputação e negócios. Com mais de 30 clientes, a empresa nasce com a missão de ajudar organizações a crescerem com coerência, confiança e propósito. 

Mas o ano não se resumiu a isso para ela. Em julho, transformou seus mais de 20 anos de carreira, muitos deles marcados pela solidão e pela necessidade de decifrar códigos corporativos, em “O Manual da Empresa Antirracista” (Planeta Estratégia), livro que serve como um chamado às empresas no Brasil.  

Na obra, a primeira de Adriana, ela desnuda o que chama de “custo-racismo” e traduz, em linguagem direta e prática, algo que afirma ser pouco comunicado com clareza nas organizações: as tensões silenciosas e os impactos emocionais e estruturais de lideranças e companhias que ignoram talentos negros. O livro nasceu de sua vivência e da escuta de centenas de mulheres negras que, como ela, tentam se mover em espaços que não foram feitos para recebê-las. 

Formada em Tradução, com especializações em finanças, governança e gestão, e passagem por multinacionais, startups e terceiro setor, incluindo o Pacto Global da ONU, Adriana fala sobre a lacuna que buscou preencher com o livro, os códigos invisíveis do mundo corporativo e o desafio de ser uma executiva negra em mesas de decisão. Ela também aborda os caminhos para uma liderança inclusiva que, de acordo com ela, é capaz de encarar tensões, corrigir desigualdades e transformar cultura em resultado.  

Meio & Mensagem — O que te motivou a escrever “O Manual da Empresa Antirracista”? Qual lacuna a obra preenche no debate corporativo sobre diversidade? 

Adriana Alves — Duas coisas me motivaram muito: uma vem da Adriana, profissional e executiva, que tem muitos anos no mundo corporativo e não se reconhece nele. Vem da minha ânsia por me entender dentro dessas instituições, porque antes não se nomeava muito nossas angústias, e carreguei isso por muito tempo. Cheguei a me machucar até, porque como não sabemos quais sentimentos e sensações são essas, é confuso. Não sabia se só eu estava sentindo aquilo. Tenho 46 anos e estou há mais de 25 nesse meio, mas faz pouco tempo que comecei a nomear esses sentimentos de ser com frequência a única em ambientes privilegiados. Agora, com certo privilégio de poder falar o que antes não podia, entendi que pouco se fala sobre isso, porque quando falamos de diversidade e de racismo, é muito do lugar apartado das instituições privadas. De comentar que a empresa está promovendo um programa de trainees de incentivo a pessoas negras, sobre a porcentagem de funcionários negros, ou, pior, que a companhia caiu numa crise reputacional porque um funcionário sofreu racismo. Mas ninguém fala como se dá tudo isso, dos bastidores mesmo.  

M&M — E como é falar sobre isso de dentro do mundo corporativo? 

Adriana — Quando ouvimos sobre isso, parece que é tudo simples, como se existisse uma fórmula mágica. Mas não é. E pouco se fala, pouco se tem coragem. Quem fala, em geral, são intelectuais que nem estão dentro desse espaço, porque quem está muitas vezes não consegue. No meu caso, o que aconteceu foi que meu lado profissional se conecta muito com o pessoal, porque muita gente vinha até mim compartilhar experiências, desabafar mesmo. Faço mentoria, tenho um programa de aceleração de mulheres negras que coordenei há uns anos, onde aceleramos centenas de mulheres e me conectei com elas. Estavam em cargos baixos, sempre muito estagnadas e feridas. Comecei a me reconhecer ali. E aí passei a entender que existe uma angústia coletiva. Por isso meu livro também é um diário, porque não queria focar tanto na parte acadêmica. Não é sobre isso, é sobre a vivência real dessas pessoas nesses espaços. O que me motivou foi também dar oportunidade para elas falarem de si mesmas. 

Na outra ponta, também sou uma pessoa que se comunica “pau a pau” com as lideranças brancas. Conquistei esse lugar muito legal em que CEOs e diretores brancos chegam em mim e falam “Adriana, você fala de algo que incomoda, mas de um lugar que nos chama”. Então, já peguei um pouco desse código corporativo que poucos dominam, infelizmente. Aliás, assim como há o livro “Coisa de Rico”, acho que daria pra fazer o “Coisa de Corporativo” também. 

M&M – Como decifrar e incorporar esse código corporativo? 

Adriana — Fui persistente, eu diria, porque é muito dolorido permanecer. Não me esqueço de uma pessoa que chegou em mim e falou: “Adriana, como você consegue frequentar restaurantes ricos e badalados de São Paulo? Eu não consigo”. A gente não tem ideia, mas estar dentro das empresas é parecido. Dói estar, entendeu? Dói ter que ir num restaurante chiquérrimo no almoço, com aquela galera que fala um código que você não entende muito bem. Demorei muito para me enxergar ali, para entender que sentimento estranho era aquele. Então esse livro vem traduzir isso um pouco. É muita coisa não visível que tentei traduzir para o código corporativo. 

M&M — Como é a jornada de ser uma executiva dentro desse universo, de um lado, e ao mesmo tempo ter uma voz ativa e crítica no debate sobre diversidade e antirracismo?  

Adriana — Olha, eu construí uma forma de dialogar. Acho que na dor você vai se forjando. Então, já sou uma pessoa forjada. Sempre falo que toda mulher negra já é [forjada], é um corpo forjado. Porque ela consegue, inclusive, ler pessoas como ninguém. Ela conseguiu, desde a época da escravidão, se ambientar em lugares e sobreviver a espaços que não eram para ela estar. Então, um corpo político como esse lê códigos diferentes e consegue se movimentar muito bem. O problema é o incômodo que isso causa, e essa é a grande questão. Quando eu era uma menina de 20 anos que trabalhava, entregava e vestia a camisa, eu não incomodava. Mas quando comecei a alçar certo privilégio e estar em mesa de decisões, percebi que passei a incomodar. Não é fácil. Ao mesmo tempo, minha maneira de me movimentar também me faz transitar bem. Sinto que incomodo muito, mas muita gente gosta de mim. Então, fico nessa dualidade. Nossa sociedade ainda não reconhece uma mulher negra mandando, decidindo. Ainda está tudo muito enraizado. Hoje, o que tenho feito é não me machucar tanto, então precisa estar bom para mim. O ambiente precisa estar mais propício do que incômodo. Não é tão simples, porque não sou herdeira, não dá para jogar tudo pro alto, então às vezes é preciso dar umas engolidas de sapo. Mas conquistei esse privilégio de, numa sociedade como a nossa, tão desigual, conseguir escolher. É o privilégio da liberdade, da autonomia. Não como eu gostaria, mas consigo.

M&M — O que é ser uma liderança inclusiva e antirracista? Como você avalia esse cenário no Brasil?  

Adriana — O mercado e o ambiente de trabalho são um reflexo da nossa sociedade. Temos tido muitas tensões sociais, políticas e econômicas, e isso se reflete no trabalho. E aí, quando falamos de lideranças, muitas deram um clique, falaram “putz, preciso melhorar, preciso aprender” e já estão nesse caminho. Há também quem tem medo de tocar no assunto porque as tensões estão por todos os lados. Muitas empresas fizeram um trabalho de inclusão, mas não souberam lidar com isso. Alguns dizem: “não sei como falar com a minha colaboradora, porque se eu elogiar demais, ela pode achar que estou fazendo isso só porque ela é negra”. Há um medo de errar, porque a pessoa vai falar “ah, você está querendo me elogiar apenas para incluir”. Fica tudo muito confuso, as pessoas têm receio de se relacionar. Então uma parte das lideranças está pisando em ovos, e outra ainda está reativa. 

O bom disso tudo é que as tensões revelam. Temos visto empresas que disseram “não vou por aqui mais, não me interessa, não me convém mais”. Outras que, de uma forma ou de outra, continuaram com a inclusão e a diversidade, mas preferem não abordar o assunto, com receio de serem retaliadas. E tem umas que disseram “quero assumir esse lugar, porque sei que é promissor”. Há também quem agora tem seus erros apontados. As tensões existem porque, de certa forma, a diversidade coloca algumas pessoas, em especial as brancas, como parte do problema. Não é sobre culpa, mas sobre contexto. Então isso também diz muito sobre as lideranças. Falo muito dessas conversas difíceis corporativas com elas. Precisamos tocar nesse assunto e discutir coisas incômodas. 

M&M — Quais os erros mais comuns que as empresas cometem ao tentar incorporar a agenda de diversidade e inclusão racial? 

Adriana — Achar que recrutar basta, sem, antes, ter a consciência de que a inclusão é necessária, mas apenas ela não resolve nada. Hoje, vejo que poucos têm essa visão. Lideranças devem saber que é preciso estudar e ter ciência de que há um contexto histórico que pavimenta essa necessidade da inclusão. Tem gente que ainda não foi atrás dos porquês, e é o líder que deve desenvolver isso. Antes, o chefe só mandava e você ia lá, produzia e trazia o resultado. Hoje, não. Sabemos que o bom líder é aquele que acompanha e desenvolve. Infelizmente, muitas empresas contratam acreditando que vem uma pessoa pronta, mas não é assim. E aí, quando você adiciona a camada da desigualdade no Brasil, sabe que as pessoas negras não vêm prontas em muitos quesitos. Há quem saia de universidades muito preparado tecnicamente, mas se entra no ambiente corporativo com um líder que não tem consciência de que apenas 5% de todo o Brasil tem inglês fluente, a situação se torna complexa. Ainda se peca muito nisso. Não estou colocando a culpa no líder, porque por trás dele há uma estrutura organizacional que pede tudo para ontem, inclusive contratações. É muita pressão e não é simples liderar num contexto como esse. Mas é preciso investir financeiramente para equiparar uma pessoa da empresa com outra, para elas alavancarem de maneira parecida. Contudo, não dá para responsabilizar apenas a empresa. Todo colaborador precisa ter a responsabilidade de ir atrás e construir, mas não adianta acharmos que basta contratar e todo mundo vai estar ali na esteira, entregando igual. Se você não investe no plano de carreira das pessoas, as pessoas negras vão ficando para trás e não permanecem. É uma competição injusta. 

M&M — E, para você, quais são os cases inspiradores empresas que estão fazendo isso bem? 

Adriana — Olha, gosto muito de empresas que não ficam nos holofotes falando sobre o tema. A L’Oréal, por exemplo, tem essa pegada, porque falar de diversidade é interessante, mas não é só sobre incluir e recrutar gente negra, é fazer com que eles sejam parte das decisões. E, mais do que isso, fazer esse 360 na cadeia de valor. Então, o que você vende também é inclusivo? Suas soluções entregam para todo mundo, para a sociedade, sem distinção? Vejo algumas empresas muito engajadas nisso. A Natura também tem um processo muito cuidadoso com inclusão. Há muitas companhias que nem estão nesse nível de big company e fazem um trabalho consistente, mesmo que discreto. É sobre quem tem coerência entre o que fala e o que pratica e não está usando isso só para marketing, 

M&M — Qual a relação entre diversidade, governança e resultados? Na ponta, o que as empresas ganham ao serem antirracistas?  

Adriana — Sempre falo que boa governança é aquela que institui e estabelece políticas dentro da empresa para todos e que trata de problemas e crises da maneira menos enviesada possível. Como conselheira, vejo que as governanças de hoje já entenderam que não dá mais para decidir uma estratégia sem considerar a área de pessoas, a cultura. Isso tem sido essencial nas mesas de decisões. E não tem como desvencilhar isso de diversidade. Então, se você sabe que a sua empresa precisa ser diversa, isso também está dentro do pilar de cultura e precisa estar pautado nas decisões e no planejamento estratégico dela. Quando você entende que o bem-estar dos seus colaboradores traz melhores resultados, percebe que um funcionário bem engajado, motivado, tranquilo e com recursos entrega melhor.   

As empresas têm falado muito de bem-estar no trabalho e segurança psicológica, porque saíram daquele nível de apenas focar em oferecer massagem para as pessoas. Já entendemos, de maneira geral, que não é sobre isso, ou sobre a mesa de pebolim. Ao mesmo tempo, segurança psicológica não envolve apenas ter terapia e um núcleo que fale sobre isso. Há um nível de entendimento importante, como “por que as pessoas não param na minha empresa? Por que não entrego resultados como gostaria?” Ora, é porque elas não estão engajadas e não se reconhecem ali dentro.

Além disso, a diversidade traz inovação, decisões mais estratégicas e diferentes. E óbvio que isso traz bons resultados. Num mundo tão ágil e rápido, com a tecnologia mudando modelos de negócio a todo instante, imagina ter apenas decisões homogêneas? Se você sempre tiver as mesmas pessoas nas cadeiras de marketing, muito provavelmente suas escolhas vão ser ultrapassadas. Tenho visto pessoas muito preocupadas com a IA, quando na verdade a gente tem que estar preocupado com o que estamos fazendo dentro das nossas empresas

M&M — Você tem pesquisado muito sobre cultura organizacional. Pode falar um pouco sobre isso? 

Adriana — Olha, tenho falado cada vez mais sobre isso, para além da diversidade. Há empresas que se promovem como uma cultura singular e forte. E aí não existe uma cultura certa ou errada, há diversos tipos. Existe a cultura que você vincula e se conecta com o que você instituiu, mas que você põe em prática. A Ambev e a Natura, por exemplo, têm uma cultura forte. São diferentes, mas consistentes. Estou me debruçando muito sobre cultura organizacional e posso afirmar que tem gente que pagaria para estar em qualquer uma dessas culturas. Então tenho desenhado arquétipos de cultura, e tenho entendido cada vez mais que não existe cultura errada. Também tenho feito um cruzamento de dados sobre a cultura idealizada e a cultura vivida. Isso esbarra em diversidade, inclusive. Porque a cultura idealizada pelas pessoas pode ser uma, mas a vivida, outra diferente. Assim como o que a cultura que uma empresa comunica e o employer branding. Em geral, esses pontos não estão amarrados. Quando a gente fala de diversidade, a gente fala da dor do colaborador, daquela pessoa que está ali pedindo socorro. Mas quando falamos da cultura organizacional desalinhada, é uma discussão universal, de negócios, para além da questão individualizada.  

M&M — Como você vê o futuro da agenda de diversidade e inclusão no Brasil? 

Adriana — Enfrentamos um grande inimigo, que é a maneira como consumimos informação. Isso reflete nas relações do ambiente de trabalho. Estamos vivendo em bolhas. E aí quando falamos de diversidade, o conteúdo fica estigmatizado, como se tivesse a ver com algum partido político. Mas está longe de ser isso. É preciso desmistificar a ideia de que diversidade está anexada a uma espécie de ideologia. Sinto que meu compromisso também é tentar quebrar essa visão. Nos últimos anos, demos três passos para frente, porque todo mundo surfou a onda da diversidade. As companhias não queriam falar disso, mas veio de um movimento da sociedade civil para o mundo corporativo. E foi bom, porque conseguimos marcar esse território. Hoje, nas empresas, a diversidade ainda é abordada, mas esse papo já está incômodo e a área tem sido descontinuada. No entanto, há uma outra realidade que nos cobra: há gerações novas chegando, consumidores mais atentos. Está vindo uma galera que está escolhendo, que não está mais engolindo tanto sapo. Esta vai ser a realidade. Isso vai ser cobrado em algum momento. Talvez não na liderança atual, mas para quem ela vai passar o bastão. É um trabalho de formiguinha, mas que não está retrocedendo totalmente.