Inspiração

Ana Kuroki: Na era da IA, estratégia é guardiã da curadoria

CSO da Africa Creative reflete sobre o papel do planejamento frente a um contexto de comunicação competitivo e fragmentado

i 16 de outubro de 2025 - 9h26

Ana Paula Kuroki, CSO da Africa Creative (Crédito: Rodrigo Pirim)

Ana Paula Kuroki, CSO da Africa Creative (Crédito: Rodrigo Pirim)

Apesar de ter começado na estratégia desde a época do estágio, Ana Paula Kuroki se orgulha de não ter seguido uma trajetória linear no mundo das agências. Hoje, ocupa a cadeira de CSO da Africa, mas antes, passou por empresas como Mesa Company, Google, Young & Rubicam, Limo Inc, entre outras.

“No fim das contas, sempre fui estrategista. Para mim, estratégia é costurar o invisível, conectar coisas que nem sempre são práticas ou tangíveis”, reflete. Foi exatamente esta mistura de experiências, de agência, consultoria, pesquisa e cliente, que a forneceu uma visão diferenciada sobre o papel da estratégia para a comunicação de marcas.

Nesta entrevista, Ana Kuroki discute sobre o lugar da estratégia num contexto informacional saturado e fragmentado, que precisa equilibrar diferentes demandas instantâneas ao mesmo tempo que mantêm uma visão de longo prazo. Além disso, a executiva também fala sobre os desafios de assumir a cadeira de CSO num momento de grandes mudanças para os clientes da agência e ainda analisa a metodologia de trabalho colaborativo que aplica no cotidiano.

Meio & Mensagem — Você tem mais de 20 anos de experiência, passando por grandes empresas como Google e Mesa Company. Como essa diversidade de experiências moldou sua visão sobre estratégia na publicidade?

Ana Kuroki — Eu me orgulho muito de não ter tido uma carreira linear, porque isso me permitiu enxergar a estratégia por outros ângulos. A agência de propaganda é um lugar confortável, quentinho, em que cada um tem um papel muito bem definido. Já quando você está no marketing de uma empresa ou mesmo em um lugar como a Mesa, tem um milhão de outras coisas acontecendo e a estratégia é apenas uma delas. Acho que isso me trouxe uma visão mais “selvagem” da estratégia. Foi como um filho mimado que descobre o mundo e percebe que existem muitas outras coisas importantes que também impactam o trabalho estratégico. Então, passei a pensar: “O que eu quero construir? A estratégia está a serviço do quê?”, mas sempre sem perder de vista tudo o que acontece ao redor. Sinto que, para mim, a estratégia cresceu como disciplina, ela está relacionada à narrativa que você quer construir, seja para a empresa, para a marca ou até para o seu time.

Ter passado por outras perspectivas me ajudou muito. O marketing, por exemplo, especialmente no Google, me ensinou que às vezes o comercial é mais importante do que pensar uma estratégia certinha. Em alguns contextos, ela ocupa outros lugares na hierarquia das prioridades: primeiro é preciso criar um bom produto, convencer lá fora de que ele tem potencial, mostrar resultados e só depois vem a estratégia de comunicação.

M&M – De que maneira a estratégia pode ser um diferencial competitivo para uma agência em um mercado cada vez mais fragmentado e saturado?

Ana — Se eu pudesse resumir, um bom estrategista é alguém capaz de costurar o invisível, e isso será cada vez mais necessário. Vivemos em um mundo com muitos estímulos, muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, e ele nunca será menos complexo. Nesse cenário, o bom estrategista é um grande editor da realidade: sabe priorizar o que importa e abandonar o que é ruído. Por isso, acredito que a área da estratégia precisa acelerar o desenvolvimento dos seus profissionais nesse sentido: na capacidade crítica e na postura diante do negócio. Os mercados estão cada vez mais competitivos, e uma área de estratégia só se diferencia quando realmente faz diferença no negócio do cliente. Hoje, com tecnologia e inteligência artificial, ficou muito mais fácil ter acesso a referências, informações e inspirações. Então, isso já não é mais um diferencial. O que realmente importa é a capacidade de, nesse mar de conteúdo, conectar os pontos certos e transformar isso em algo que faça diferença real para o cliente ou para o lugar onde você trabalha.

M&M – Como você equilibra a busca por resultados de negócio imediatos com estratégias que gerem valor de marca a longo prazo?

Ana — Isso é o drama da realidade. Quem trabalha com grandes marcas está enfrentando esse desafio: qual é o equilíbrio perfeito entre o rápido e o devagar? Como ser responsivo ao que está acontecendo culturalmente agora, sem perder de vista o que a marca é? A sensação que eu tenho é que existem duas esteiras simultaneamente. Não dá para ter só uma linha de comunicação ou uma grande agenda alternando movimentos curtos e longos. São duas esteiras rodando ao mesmo tempo. Uma delas é mais frívola, instantânea e reativa: algo acontece, surge um comportamento novo, e você molda um produto ou responde a uma demanda. Isso é inevitável, especialmente quando falamos de consumo. É preciso ter essa agilidade. Mas existe também a outra esteira, a de criação de valor no médio e longo prazo, que é cada vez mais importante. Ela exige clareza sobre o papel, o posicionamento e os valores fundamentais da marca, além da capacidade de não perder isso de vista na hora de agir e fazer escolhas. É essa esteira que constrói valor e diferenciação de verdade.

Trabalhando com marcas líderes de segmento, para gente está cada vez mais claro: não dá pra surfar qualquer onda, nem se apaixonar pelo que é imediato. É preciso saber quando e como entrar. Então gosto de pensar assim: existe a esteira da velocidade, em que é preciso responder rápido, mas com critério, e existe a esteira sagrada, a do valor e da essência da marca, que não pode ser perdida de jeito nenhum.

M&M — Desde que você assumiu o cargo de CSO da Africa, quais foram os maiores desafios ao liderar a visão estratégica da agência?

Ana — Quando cheguei, já existia um time, uma cultura e uma forma consolidada de pensar estratégia dentro da agência. Então, meu primeiro desafio foi acomodar essa visão: alinhar meu time ao meu modo de pensar, me conectar com os clientes a partir desse olhar e encontrar esse ponto de equilíbrio entre o que já existia e o que eu acreditava ser o papel da estratégia. Depois vieram os desafios mais práticos. Costumo brincar que, quando cheguei, parecia que o Mercúrio retrógrado tinha sido elevado ao quadrado: tudo aconteceu ao mesmo tempo. Recebemos o briefing dos 100 anos do Itaú, uma marca de uma categoria super competitiva, o que exigia pensar uma estratégia robusta para um ano simbólico. Ao mesmo tempo, começamos a receber uma enxurrada de demandas da Natura, que já era cliente da casa, mas estávamos assumindo novas frentes, como social, conteúdo e influenciadores. Para dar conta disso, criamos o Bioma, uma agência dentro da agência dedicada exclusivamente à Natura, com um novo time e novas contratações. Além disso, também tivemos os 80 anos de Sadia e o reposicionamento da Vivo.

O ano passado foi especialmente simbólico, porque todos os principais clientes da África estavam em momentos importantes, e a área de estratégia teve um peso enorme em cada um deles. Então foi assim: trocar o pneu com o carro andando. Eu ainda estava me adaptando à agência e, ao mesmo tempo, lidando com esses grandes projetos e transformações acontecendo de uma vez só.

M&M – Qual é o seu processo para alinhar equipes multidisciplinares, dados, planejamento, criação e atendimento, em torno de uma estratégia coesa?

Ana — A gente tem uma lógica bem simples que chamamos de “FIN”, que significa “fato, insight e narrativa”. No primeiro momento, estamos muito focados na busca por fatos, que na prática são dados. É uma fase de levantamento intenso de informações sobre um determinado tema. É quase um trabalho de mineração de dados, feito pelo time de estratégia em conjunto com o time de BI, que faz a leitura das redes sociais e de outros indicadores. A partir daí, a liderança da conta faz uma curadoria: pinça os fatos mais significativos, aqueles que têm conexão com o produto, com o comportamento ou com o público que queremos atingir. Esses fatos dão origem aos “insights”. É o primeiro grande momento em que juntamos todo mundo, mídia, atendimento, dados e criação, para discutir.

Nesse estágio, a discussão é muito estratégica. A gente sente o que realmente pega, porque às vezes você acha que encontrou um insight, mas ele é complexo demais e não engaja o grupo. Então esse momento de teste e troca é fundamental. A partir daí, criação, mídia e conteúdo começam a trabalhar em paralelo, desenvolvendo ideias e construindo uma narrativa em cima desses insights. Esse processo é colaborativo e iterativo. A gente vai e volta o tempo todo, ajustando, testando, trocando ideias, até chegar no resultado final.

M&M – Como você descreveria seu estilo de liderança?

Ana — Sou uma liderança muito horizontal. Fui criada nesse estilo de liderança menos hierárquico e verticalizado, muito mais colaborativo. Na Mesa, por exemplo, um dos fundamentos é justamente a ruptura da hierarquia. Quando você monta uma grande mesa, os times são sempre de altíssima performance, com altas lideranças, C-levels de grandes empresas e especialistas de mercado. Está todo mundo ali, no mesmo espaço, sem hierarquia. E o aprendizado mais forte disso é que, quando você rompe a hierarquia e foca no trabalho, tudo se torna muito mais eficiente. Depois da Mesa, essa minha forma de liderar se intensificou. Realmente me tornei uma liderança ainda mais colaborativa e horizontal. Por isso, quando chego em um novo time, como foi na África, gosto de construir junto. Todo grande briefing ou projeto é feito em colaboração. Quero estar junto, quero participar.

M&M – Como você vê o futuro da estratégia na publicidade, especialmente com o avanço da inteligência artificial e o crescimento das plataformas digitais?

Ana — Um ex-colega meu de estratégia, o Danilo Futema, criou uma fórmula interessante: criatividade é igual a referências disponíveis (repertório) vezes capacidade de processamento neural, dividido por viés. Ele usava a inteligência artificial para provar a tese, mostrando como ela ajuda a romper vieses. Por exemplo, se você pede para criar um super-herói na floresta, a IA não necessariamente vai trazer a imagem clássica de um homem forte, branco e europeu, ela pode sugerir um animal como herói, rompendo esse padrão. A partir dessa fórmula, eu comecei a pensar sobre criatividade aplicada à estratégia. Não sou uma estrategista teórica, sou uma estrategista criativa. Então, na minha leitura dessa fórmula, o “dividido por viés” se transforma em “dividido por curadoria e crítica”. Por isso, quando olho para o futuro, vejo que a inteligência artificial vai ampliar muito tanto o repertório quanto a capacidade de processamento. Mas o que corre risco de se perder é essa habilidade de crítica e curadoria, esse olhar quase artesanal sobre o excesso de informação disponível.

Ser estrategista é, essencialmente, fazer escolhas. A gente recebe uma pesquisa enorme, cheia de atributos e dados, e precisa decidir o que é realmente relevante para a construção daquela marca. Essa é a natureza da estratégia: ser um curador com um olhar crítico diante da informação. Acho que, nesse mundo cada vez mais automatizado e acelerado, é natural que a sociedade perca um pouco essa capacidade crítica, porque tudo está mais conveniente, fácil e rápido. Por isso, vejo o futuro do estrategista como o grande guardião da curadoria e da profundidade, alguém que preserva o pensamento crítico, o olhar profundo e não se deixa seduzir apenas pelo que é efêmero.