Débora Fernanda e o desafio da diversidade nas agências
A head de RH, diversidade e inclusão da Gut fala de carreira e do hábito da indústria de contratar por afinidade

Débora Fernanda é head de RH, diversidade e inclusão da Gut (Crédito: Divulgação)
Débora Fernanda, head de RH, diversidade e inclusão da Gut, chegou à publicidade por um caminho pouco convencional. No auge da pandemia, quando planejava uma pausa na carreira, mergulhou no trabalho voluntário: fundou o Quilombo Carreira, mentoria voltada a mulheres, pessoas negras e refugiadas, e integrou o comitê de igualdade racial do Grupo Mulheres do Brasil, liderado por Luiza Trajano.
A visibilidade nessas iniciativas a levou até a Gut. Sem nunca ter trabalhado com publicidade, entrou com a certeza de que, se o tema era gente, estava pronta. Desde então, se apaixonou pela indústria e encontrou nas agências um espaço fértil para impulsionar a agenda de diversidade.
Antes disso, Débora construiu uma carreira sólida em recursos humanos. Atuou em recrutamento de massa e em seleção de executivos, com passagem por consultorias e pela Serede, empresa do grupo Oi, no Rio de Janeiro. Lá, desenvolveu a capacidade de navegar por diferentes culturas e lideranças, entendendo o papel estratégico do RH como guardião da cultura.
Caçula de três irmãs, a executiva cresceu na periferia de Guarulhos, filha de uma costureira e de um mestre de obras. “Sempre digo que, por falta de recursos, minha mãe não foi estilista e meu pai não foi arquiteto.” Criada num ambiente criativo e cercado por talento, desde cedo foi incentivada a pensar no futuro e em carreira. Chegou a se formar como comissária de voo, mas foi mãe aos 21 anos e recusou uma vaga internacional quando o filho ainda era bebê.
Hoje, com uma longa jornada em gestão de pessoas, ela defende que o trabalho do RH precisa ultrapassar os muros da empresa e impactar a vida das pessoas de forma integral.
Nesta entrevista, Débora compartilha sua trajetória e sua visão sobre diversidade e inclusão, cultura organizacional e o papel do RH dentro e fora das empresas.
Meio & Mensagem – Qual é o principal desafio na cadeira de liderança de RH de uma agência de publicidade?
Débora Fernanda – A sensibilização das lideranças, porque a indicação ainda é muito forte no mercado publicitário. Quando uma vaga abre, já se sabe com quem quer trabalhar. A pessoa já passa a mão no telefone e liga. E, quando vemos, são sempre as mesmas pessoas, com quem já estamos acostumados, com o mesmo repertório, mesma vivência e mesma origem. Falta diversidade na forma de existir, na bagagem de vida. Temos que constantemente lembrá-los de que podemos fazer diferente. Tem uma frase da Grazi Mendes que repito para as lideranças: “Qual mudança a sua caneta alcança?” A diversidade não pode ser só bonita na vaga do outro ou na empresa do outro. Diversidade é estratégia. E, se você tem uma vaga agora, esse é o momento de ser ponte para quem tem dificuldade de chegar nesses lugares que já estamos ocupando.
M&M – O mercado publicitário sempre funcionou com prazos apertados. Como equilibrar performance, bem-estar e segurança psicológica?
Débora – Existe uma cultura no mercado publicitário em torno disso. As pessoas têm paixão por passar horas em cima de um deck, de uma ideia, e em idas e vindas nas reuniões com o cliente. Mas percebo que essa paixão, se não for vigiada, pode virar uma busca por eficiência que leva ao cansaço extremo, ao burnout. Por isso, aqui eu sempre digo: permita-se ser cuidado. A gente para a pessoa e fala: “olha, seu descanso não será só nas férias”. Existe uma cultura no Brasil que precisamos transformar. Devemos entender que podemos, e devemos, descansar nas férias e também além delas, sempre que nosso corpo e nossa mente pedirem.
M&M – Na sua visão, o que é mais importante na indústria: atração ou desenvolvimento de talentos?
Débora – Retenção e desenvolvimento. As grandes agências já têm uma marca forte, que por si só atrai os talentos. Eles entendem que trabalhar numa Gut, por exemplo, já projeta a carreira. Então o desafio está em entender como desenvolver e reter essas pessoas. É essencial identificar o que motiva cada uma. Algumas são guiadas por prêmios, outras focam na qualidade de vida, querem entrar às 9h e sair às 19h. Precisamos entender essas motivações e se temos condições de supri-las. Não adianta entrevistar alguém, ir com um texto decorado, sem entender o que vai motivar essa pessoa a permanecer. Falamos com muitos talentos que pensamos: “nossa, seria incrível trabalhar com ela”, mas percebemos que os valores são diferentes dos nossos. E, se não oferecemos o que ela busca, ela vai ficar pouco tempo.
Na Gut, fazemos entrevistas com quem acabou de entrar para entender se a experiência está de acordo com o que ela imaginou fora da empresa, se o que falamos na entrevista está acontecendo para ela. A cultura precisa estar viva. Não basta estar na parede, nos decks ou nas apresentações. Cultura vive no comportamento e nas atitudes. Sem pessoas e sem comportamento, não existe cultura. Por isso, é fundamental manter o processo de feedback ativo, com avaliações estruturadas ano a ano, mas também com olhar individual para cada pessoa. E isso exige tempo. A gestão, de maneira geral, costuma dedicar tempo para clientes, estratégias, networking. Mas quando estamos falando de gerir pessoas, também precisamos de tempo de qualidade. As lideranças, independentemente de serem de agência ou não, não estão acostumadas a separar um bom tempo de qualidade para gerir pessoas.
M&M – Quais são as barreiras atuais para avançarmos na agenda de diversidade e inclusão nas agências?
Débora – Vim de segmentos muito corporativos e, quando cheguei no mercado publicitário, percebi uma dinâmica muito diferente. As pessoas trabalham juntas, viajam juntas, casam entre si. Isso é muito bacana. Desconstruiu aquela ideia que ouvi a vida inteira de que “trabalho é trabalho, amizade é outra coisa”. Tem um lado positivo, mas também um lado ruim: é mais difícil abrir essa roda para trazer novas pessoas. Sempre digo na Gut que precisamos nos permitir conhecer e gostar de novas pessoas antes mesmo de ter uma vaga. Porque, quando a vaga surge, geralmente vem com urgência, com cliente cobrando e resultado esperando. E essa pressa pode comprometer a estratégia de diversidade. Uma das soluções é justamente essa, conhecer pessoas antes da vaga aparecer. Ter um olhar justo para a carreira de quem traz diversidade. Num país onde apenas 5% da população fala inglês fluentemente, é justo querer fluência de pessoas periféricas que não tiveram acesso a boas escolas ou cursos de idioma? Estou aplicando o mesmo critério para alguém que teve todos os acessos, como escola de qualidade, 8 refeições por dia, transporte seguro e digno, sem estresse? Será que devo exigir o mesmo nível de entrega dessas pessoas ou posso olhar para a bagagem além do currículo? O que a vivência dessa pessoa traz para o dia a dia e como isso pode contribuir para o nosso resultado?
M&M – Quais métricas vocês usam para avaliar o sucesso das políticas de D&I da Gut?
Débora – Hoje, temos algumas métricas que ajudam a sustentar e manter o que estamos fazendo em diversidade. Além de um censo geral, também temos um censo por área. Toda vez que uma vaga é aberta, mostramos ao gestor a realidade de diversidade do time dele e apontamos o que está faltando. Por exemplo: “faltam mulheres negras, mulheres periféricas, mulheres trans. Vamos transformar essa vaga em afirmativa?” Outra estratégia está na reposição. Quando perdemos um talento diverso, tentamos repor com alguém do mesmo perfil. Se perdemos uma mulher, buscamos repor com outra. Se é uma pessoa preta ou PCD, também. Isso tem nos ajudado a manter um ambiente diverso e com proporcionalidade entre os times. É um cuidado para que não exista apenas uma mulher ou uma pessoa periférica isolada na equipe, para que essas pessoas também se reconheçam dentro do time. Essa é uma estratégia que aplicamos na Gut de São Paulo e também nas outras, junto com os comitês de diversidade e os grupos de afinidade, que ajudam a dar suporte a toda essa construção.
M&M – Qual é o papel dos clientes e empresas parceiras no fortalecimento de agenda de D&I?
Débora – Hoje, o comitê de diversidade atua até nas campanhas. Analisamos a narrativa para verificar se ela representa de fato a população brasileira. Existe um checklist que considera, por exemplo, se numa peça há pessoas idosas, se estão estereotipadas, e assim por diante. Se a campanha não cumpre esses critérios, ela volta e mudamos a narrativa. Temos uma estrutura robusta que permite fazer isso. Essa preocupação se estende à cadeia de fornecedores. Buscamos, por exemplo, que a empresa de catering seja composta por pessoas diversas, e também que produtoras e gravadoras sejam fundadas e compostas majoritariamente por mulheres ou pessoas negras. Tentamos nos cercar nesse 360 para que a gente consiga trabalhar a diversidade em toda a cadeia.
Além disso, temos um processo de letramento global e local que fazemos todo ano. Mas também deixamos claro um ponto importante: “a gente não é obrigada a te ensinar nada”. Ainda ouvimos frases como “ninguém me ensinou”. Eu, educadamente, digo: “você está dizendo que preciso abrir o seu Google e ler para você?” Porque estamos falando com pessoas que têm acesso à informação. Então, não há desculpa. Mas, sempre que percebemos que o assunto exige um alinhamento mais amplo, interrompemos tudo para tratar isso globalmente.
M&M – O que você acha que ainda falta para as agências de publicidade serem mais consistentes em D&I?
Débora – Quanto a RH e diversidade, acredito que ainda há espaço para mais comunicação entre as agências. Quando o tema é cuidar de pessoas e sustentar a diversidade, não existe concorrência. Precisamos ter esse olhar e nos conversar mais, para fomentar algo maior, que vá além dos resultados individuais que cada agência busca em diversidade. É necessário fazer um movimento que tenha impacto real na sociedade.
M&M – Para você, qual será o futuro do RH?
Débora – O RH nunca pode perder sua natureza de ser radicalmente humano. Isso não pode sair do nosso campo de visão, porque as tendências vão e voltam. Muitas vezes, elas só mudam de nome e ganham nova visibilidade. Por isso, precisamos olhar criticamente para elas avaliar se são de fato novidades ou apenas uma nova roupagem. Ao mesmo tempo, o RH está cada vez mais estratégico e integrado ao negócio. Não acredito num RH apartado, que não esteja na mesa de decisão ou em contato com o CEO e o CFO. Para mim, a trinca perfeita é RH, CEO e CFO. Eles têm que caminhar juntos para entender o negócio. Então, a tendência de RH que não podemos perder de vista é ser estratégico, estar nas mesas de decisões e ser radicalmente humano. Isso impacta muito além da empresa e transborda para a vida das pessoas. Afeta como elas chegam em casa, como se relacionam com suas famílias. Todo trabalho de RH e liderança corporativa precisa ultrapassar os muros da empresa.