Inspiração

Marie Gerbauld: “Está difícil manter o DNA das agências”

Nova CCO da David reflete sobre o papel da criatividade em meio à "pasteurização da indústria"

i 24 de julho de 2025 - 14h33

Marie Julie Gerbauld é promovida em um momento estratégico para a DAVID (Créditos: Divulgação)

Marie Julie Gerbauld, CCO da David (Crédito: Divulgação)

Marie Julie Gerbauld é CCO da David, cargo que acabou de assumir após um ano e meio na agência. A criativa tem passagem por agências como AKQA, Publicis, DPZ e Binder, mas começou sua carreira no Rio de Janeiro. Aos 26 anos, recebeu uma proposta para se tornar head de arte da Publicis carioca, atendendo a L’Oréal. Até então, nunca havia cogitado ocupar uma posição de liderança.

“Como mulheres, crescemos ouvindo que diretora de arte virar gestora era quase impossível. Era um cargo muito associado a homens e a redatores. Então, diretora de arte mulher? Fora de questão”, lembra.

Permaneceu na Publicis por nove anos, onde também teve a oportunidade de se mudar para São Paulo e assumir a conta da GM. “Depois disso, atendi praticamente todos os clientes da agência: GM, Health, Sanofi, P&G, Nestlé, Heineken, Bradesco. Brinco que zerei a agência.” Em seguida, surgiu o convite de ir para a AQKA, onde permaneceu por mais de três anos.

Após 13 anos como diretora de criação, Marie já sentia que estava pronta para dar o próximo passo na carreira. “E a gente, como mulher, às vezes tem dificuldade de olhar pra isso e pensar: ‘Poxa, tem tanta gente menos preparada subindo, por que não eu?’. Mas me forcei a olhar pra mim mesma e reconhecer que precisava dar outro passo.” Assim, assumiu o cargo de ECD na David e, mais recentemente, foi promovida a CCO.

Nesta entrevista, Marie Julie fala sobre esse próximo passo na carreira, liderança, criatividade, tendências, desafios e os avanços da representatividade feminina na criação publicitária.

Meio & Mensagem – Você recentemente foi promovida a CCO. Na sua opinião, o que te levou a alcançar essa posição? 

Marie Julie Gerbauld – Desde que virei diretora de criação, procurei me aprofundar bastante nesse papel. Estudei muito, tentei entender o quanto isso pode gerar impactos positivos na equipe. Estar próxima, dar feedback, participar da trajetória de desenvolvimento das pessoas… sempre vi isso como algo bom para todo mundo: para eles, para a agência e para o crescimento coletivo. Então, quando entrei aqui, acho que já estava bem preparada nesse sentido, nesse olhar para a equipe. Mas também sempre tive muita vontade de crescer o negócio e olhar para o business do cliente. Quando a gente pensa em criação, não somos historicamente muito orientados para esse lado de números, finanças, business, mas sempre tive vontade de estar nesses lugares. Então cheguei com esse olhar meio preparado para os dois lados: gestão de equipe e visão de negócio. Acho que a David combina com isso também, porque a agência tem no seu DNA essa proximidade com o cliente. Sempre falamos que David é o primeiro nome do David Ogilvy, então a agência foi criada com essa proposta de intimidade, de olhar no olho, de entender de verdade o que cada cliente precisa. Talvez por isso esse casamento tenha funcionado tão bem. E foi por isso que essa promoção aconteceu agora, depois de um ano e meio na agência.

M&M – Como foi o processo de desenvolvimento da campanha ‘Shot on Faber-Castell’?

Marie – Essa campanha é muito legal, temos um carinho enorme. Primeiro porque a Faber é um cliente que tem uma relação muito próxima com a David, foi um dos primeiros da agência. Temos uma parceria profunda, de crescer e construir juntos. E acho que, num momento em que todo mundo está falando de IA, às vezes paramos de valorizar o que é realmente genuíno, feito de forma original, como o lápis de cor. Essa campanha exaltava o craft, mostrava que ainda é possível atingir um nível incrível de execução com algo tão básico quanto um lápis.

Enquanto o mundo corre para outros lados, da IA, da velocidade e da automação, essa campanha foi na contramão: ilustradores que levaram 120, 240 horas para desenhar cada peça. É um olhar minucioso, dedicado. E acho que, por isso, a gente tem tanto carinho por esse trabalho: ele também faz um “statement”. Ele lembra que a gente não pode esquecer o que não vai deixar de existir. Precisamos aprender a equilibrar essas coisas, e essa campanha é legal justamente por isso, pelo momento em que ela acontece e pelo que representa.

M&M – Qual outra campanha você desenvolveu em sua carreira que te marcou?

Marie – Prefiro falar da campanha mais recente que colocamos no ar, a dos mamíferos, para NotCo. Gosto muito dela porque traz um ponto importante: o impacto na cultura. Mostra o poder de uma boa ideia e, de novo, em tempos de IA, ainda existe algo que não perdemos: o olhar para o timing, para o que está acontecendo, e como a gente consegue impactar a cultura com uma narrativa única. A IA vai gerar milhões de coisas, vai nos ajudar a segmentar, a fazer coisas incríveis. Mas a curadoria, o filtro do que vai reverberar na cultura e engajar as pessoas porque é divertido, leve, ou tem uma narrativa única ainda é nosso. Está cada vez mais difícil para as agências manterem um DNA próprio. A tendência é a gente se pasteurizar um pouco, porque as ferramentas são as mesmas. Mesmo que cada grupo esteja criando suas soluções, ainda assim, a chance de perder a identidade é grande. No fim, o que vai importar é a curadoria das ideias que surgem desse processo todo. Quais têm a cara da agência, que conseguem manter esse diferencial? Quais mostram nosso jeito de pensar e de nos expressar? É muito legal quando alguém fala: “Nossa, essa ideia é muito David. Só podia ser da agência”. É isso que tentamos preservar aqui.

M&M – Como você alimenta sua criatividade?

Marie – Beber de outras fontes é extremamente importante. Não podemos ficar nos retroalimentando das mesmas referências, senão chegamos sempre nos mesmos lugares. Eu, por exemplo, gosto muito de moda, porque tem um olhar estético forte e traz referências muito boas pra gente. Mas também acho que a originalidade está nesse lugar da esquisitice, sabe? Pensar em coisas que são estranhas, que desafiam o óbvio. Isso vale para tudo que a gente consome. É sobre conseguir enxergar além e pensar: qual é o “weird factor” (fator esquisito) aqui? Brinco que sou esquisita. Gosto de ousar nesses lugares fora da norma, de desafiar o esperado. Então, por que precisa ser sempre do mesmo jeito? Vamos tentar olhar diferente. Ver se não tem alguma coisa estranha, no bom sentido, que podemos explorar ali.

M&M – O quanto a área de criação evoluiu em relação à presença feminina e o que ainda falta?

Marie – Ainda temos muito caminho a percorrer. Passamos por um período em que o mercado começou a se movimentar, mas logo depois vimos um retrocesso. Por quê? Muitas vezes essas mudanças não são feitas de forma estruturada ou pensada. Elas existem para cumprir tabela, para preencher organograma e bater uma porcentagem. E aí, aquela pessoa não foi pensada não teve feedback, não teve nenhum tipo de desenvolvimento. Então, acho que as contratações precisam ser mais conscientes. Se não podemos desenvolver essas pessoas, vamos continuar nesse ciclo de um passo para frente e outro para trás. E é justamente isso que o mercado não quer. O que vi muito foi mulher pulando de um lugar para o outro, sem se desenvolver de verdade, ganhando aumento de salário, mudando de júnior para sênior muito rápido, sem ter passado pelo processo real de crescimento. E isso, em algum momento, vai dar problema também.

É um tema difícil porque exige comprometimento real. Tem que abraçar a causa de verdade, estar junto, oferecer as oportunidades certas e cobrar da forma correta. Vejo que, como mercado, ainda não estamos nesse lugar, mas tenho fé de que vamos chegar lá. O retrocesso que a gente viveu foi grande e isso é triste. É um sintoma claro de que o problema ainda não está resolvido. Mas se cada um entender essa responsabilidade e começar a agir de forma mais estruturada, acho que chegamos lá mais rápido.

M&M – Qual foi o maior desafio que você enfrentou em sua carreira e como lidou?

Marie – Acho que ele está por vir. Ninguém deveria te dar um cargo para o qual você não está pronta. Pelo menos, ao longo da minha trajetória, nunca me deram algo que eu ainda não tivesse dentro de mim. A pessoa precisa enxergar que você já está naquele lugar antes mesmo de receber o cargo. Então, acho que o desafio começa agora. Estando aqui, como CCO, quero fazer o melhor que puder. Quero, de fato, ser uma inspiração para outras mulheres. Quero fazer jus a isso. Quero que a gente consiga abrir cada vez mais espaço para que mais mulheres possam ocupar esse lugar também. É um desafio enorme e, para mim, começa agora. Por mais que a liderança já existisse e a gente já estivesse fazendo coisas legais, agora me cobro ainda mais para que a gente vá além.

M&M – Como você descreveria seu estilo de liderança?

Marie Sou muito próxima. Acredito de verdade numa liderança horizontal. E quando eu digo isso, não é no sentido de todo mundo ter a palavra final, sabe? É sobre acessibilidade. É as pessoas conseguirem falar com você, trocar ideia, entender para onde a gente está indo. Acho essencial que todo mundo tenha clareza da direção da agência, do que é importante e do que a gente está buscando, em termos de cases e retorno. Esses pontos precisam estar muito bem definidos. E, para isso, a troca tem que ser muito transparente.

Transparência é um valor importante para mim. Sinto que, muitas vezes, não oferecemos essa transparência, principalmente para os criativos. Existe esse movimento de proteger os criativos, de não frustrar. A gente vai poupando eles. Mas acredito no contrário. Quando os criativos entendem o contexto, as questões de business e políticas, e o impacto que isso tem, em três, quatro, cinco rodadas de criação eles se apropriam mais do trabalho. Eles entendem o porquê das coisas. E isso faz diferença. Além disso, sempre digo que levantar a mão é sinal de senioridade. Tem gente que acha sinal de fraqueza, mas, para mim, é sinal de confiança. É saber o momento certo de dizer “preciso de você”. No fim das contas, tento incluir as pessoas nos porquês. Por que a gente está fazendo isso? Qual o impacto? Hoje em dia, a gente fala muito sobre gerar impacto real de negócio para os nossos clientes, e a criação precisa dar retorno. Não é mais criatividade pela criatividade. Isso já ficou para trás.

M&M – Para finalizar, qual tendência de criação você apostaria para os próximos anos?

Marie – Estamos vivendo um momento em que só se fala de IA. Mas, pra mim, o ponto principal é: como vamos manter a nossa cultura e o nosso diferencial se estamos todos bebendo das mesmas fontes generativas? Mesmo sabendo que a inteligência artificial entrega resultados diferentes a cada uso, a verdade é que, quanto mais usamos essas ferramentas, mais a qualidade criativa tende a se pasteurizar. Então, o desafio está em como usar essas ferramentas da melhor forma possível, como um apoio que tem, sim, ajudado muito na parte operacional, mas sem perder o que é nosso e único. Ainda se fala pouco sobre essa curadoria. Sobre como manter o que a gente acredita, como preservar o diferencial de cada agência, principalmente na parte conceitual, de geração de ideias, no jeito único de fazer as coisas. A gente acaba virando quase um chief culture officer, além de CCO. Porque, no fim, a agência também é uma marca, feita de outras marcas. E se a gente está aqui ajudando a construir as marcas dos nossos clientes, também precisamos zelar pela nossa. E isso passa por reforçar essa cultura em tudo o que a gente faz. No fim, as marcas nos procuram justamente por um trabalho diferente, por uma entrega que carrega essa cultura.

Para mim, o CCO hoje cuida de três frentes: da cultura interna, da cultura que a gente quer impactar lá fora e da cultura das marcas com as quais a gente trabalha. E como não perder isso tudo e não deixar que fique pasteurizado? Pode não ser uma tendência ainda, mas é algo em que tenho pensado bastante e que precisamos cuidar.