Flávia Maia: “A crise climática é uma crise de liderança”
Cofundadora da ONG Filha do Sol explica que desenvolver líderes é a chave para enfrentar o problema

Flávia Maia, cofundadora e diretora criativa da ONG Filha do Sol (Crédito: Agência Enquadrar)
Flávia Maia é cofundadora e diretora criativa da Filha do Sol, uma ONG formada por lideranças femininas que atuam na linha de frente da crise climática no Brasil. Originária do Piauí, a organização atua principalmente no delta do rio Parnaíba, uma região de grande biodiversidade ameaçada pela seca, pela elevação do nível do mar e por práticas insustentáveis, onde busca promover justiça climática e regeneração ambiental.
No último dia 15 de, Flávia esteve do Rio Innovation Week 2025, no qual participou da palestra “Liderança para o século XXI: governança socioambiental e bem viver”, ao lado de Marcelo Gleiser, físico ganhador do Prêmio Templeton, na qual discutiram como empresas inovadoras estão reconstruindo o capitalismo com impacto social, regeneração ambiental e valor compartilhado.
Nesta entrevista, Flávia compartilha sua trajetória pessoal marcada pelas histórias da seca nordestina e ressalta a importância da liderança feminina para enfrentar a crise climática, destacando que as mulheres são tanto as mais afetadas quanto protagonistas das soluções. Ela também enfatiza a necessidade de uma transição energética justa e o papel estratégico das empresas e dos líderes corporativos no debate climático mundial.
Meio & Mensagem – Como suas origens influenciaram seu engajamento com a questão climática?
Flávia Maia – Sou do Piauí, nascida em Teresina. Na minha família, tanto do lado da mãe quanto do pai, há pessoas que vieram do Ceará fugindo da seca histórica e recorrente que marca a vida de tantos nordestinos. De certa forma, sou parte dessa história da mudança climática no Brasil, porque cresci ouvindo esses relatos e vivenciando essa realidade por meio das manifestações artísticas e culturais, como a música “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, que sempre gosto de citar. Ela fala da seca e da dor de deixar a própria casa. Quando ele canta “quando olhei a terra ardendo com a fogueira de São João, perguntei a Deus do céu por que tamanha judiação” e, depois, “espero a chuva cair de novo pra eu voltar pro meu sertão”, ele traduz exatamente essa experiência. Essa também é a minha história, assim como a de tantos brasileiros: uma vida marcada pela mudança climática. Crescer no Piauí, em contato com tudo isso, me deu desde cedo uma consciência ambiental e um pensamento crítico. Por isso, quando precisei escolher minha profissão, decidi me especializar em sustentabilidade e resiliência climática. Mais recentemente, passei a me dedicar também ao desenvolvimento de lideranças, porque entendi que, para enfrentar a crise climática, precisamos de lideranças melhores. Afinal, a crise climática é, no fundo, um sintoma de uma crise de liderança.
M&M – Como surgiu a organização Filha do Sol?
Flávia – A Filha do Sol é um projeto de três mulheres: eu, Ravena Madeira e Rebeca Viana. Somos amigas e hoje moramos no litoral do Piauí, em uma comunidade de linha de frente da crise climática: uma área costeira sujeita à elevação do nível do mar e bastante degradada pelo turismo predatório e pela urbanização insustentável. Nós três nos mudamos para esse vilarejo em 2020, durante a pandemia, principalmente em busca de uma vida melhor. Lá, encontramos uma comunidade de mulheres ecofeministas, que têm o cuidado como centro do cotidiano, o autocuidado, o cuidado com os outros e com a natureza. Foi nesse ambiente que decidimos nos estabelecer e criar a Filha do Sol, também pautada no cuidado. Hoje, a ONG trabalha com mulheres em linha de frente, principalmente já conectadas em rede, trazendo recursos, conhecimento e fundos para seus projetos de clima, ajudando-as a construir resiliência climática em suas próprias comunidades.
O objetivo é evitar que o futuro repita o passado, com mais migrações climáticas, caso os impactos que já conhecemos no Nordeste, a seca e a elevação do nível do mar continuem a se intensificar em um cenário de desigualdade socioeconômica e políticas públicas ineficazes. A Filha do Sol nasce, portanto, desse ato de cuidado com a gente, com as redes das quais fazemos parte e com o nosso território. Gosto de dizer que o projeto é, antes de tudo, um gesto de amor.
M&M – A representação feminina ocupa um papel central na Filha do Sol. Por que o protagonismo das mulheres é tão importante no combate às mudanças climáticas e na regeneração socioambiental?
Flávia – Primeiro, olhando para o problema em si: meninas e mulheres estão sempre entre os grupos mais atingidos pela mudança climática. Isso acontece por diferentes fatores, ligados a condições culturais e a um sistema injusto, patriarcal, que limita as oportunidades de educação e trabalho. Como consequência, meninas e mulheres geralmente têm menor renda do que os homens e, portanto, menos capacidade de se adaptar a crises climáticas. Em qualquer cenário de crise, quem tem menos renda têm menos capacidade de resposta, e isso se repete com mulheres no mundo todo. Por exemplo, quando há escassez de água, são as mulheres que percorrem longas distâncias em busca de uma fonte limpa. Nesse trajeto, elas ficam ainda mais vulneráveis à violência sexual, por estarem em ambientes sem proteção, e também aos próprios impactos ambientais, como a desidratação.
Agora, olhando para o lado da solução, existem muitos dados que mostram a efetividade da liderança feminina diante da crise climática. Um exemplo é o projeto Drawdown, que quantifica o impacto das soluções climáticas e coloca a educação de meninas e mulheres e o planejamento familiar entre as estratégias mais potentes para lidar com a crise, acima até da energia eólica e solar no ranking. Na nossa experiência, isso também fica evidente. Em cada comunidade que visitamos no Piauí, no Maranhão e no Ceará, vemos que quem já está liderando o enfrentamento da crise climática são as mulheres, líderes de igrejas, professoras, presidentes de associação, empreendedoras e ecoempreendedoras.
E com isso não quero dizer que as mulheres, sozinhas, vão salvar o mundo, ou que todos os líderes precisam ser substituídos por mulheres. O que aponto é a importância da diversidade nos espaços de tomada de decisão e de acesso. É apenas justo que as mulheres possam acessar redes globais de recursos, inclusive de financiamento climático, e que haja mais equilíbrio nos espaços de representação. Porque o problema não é simplesmente elas não terem recursos, mas o sistema patriarcal que limita as oportunidades para que elas sejam líderes climáticas.
M&M – Vocês estão numa região de delta no Piauí. Quais os impactos climáticos e sociais que o lugar já enfrenta atualmente?
Flávia – O delta do Parnaíba é uma região muito interessante do Brasil, mas ainda pouco conhecida. É um lugar lindo, onde o rio Parnaíba encontra o mar, com um equilíbrio delicado entre água doce e salgada, que permite uma biodiversidade incrível florescer em mais de 70 ilhas entre o Maranhão e o Piauí. É uma região extremamente rica, mas também muito vulnerável. Afinal, quando o nível do mar sobe, os primeiros territórios a desaparecer não são os do interior, mas justamente as pequenas ilhas e áreas costeiras. Esse já é o impacto mais evidente que se observa. Além disso, é uma região marcada por desigualdade socioeconômica e por um turismo praticado de forma injusta. O turismo de base comunitária acaba sendo menos valorizado do que os grandes empreendimentos, e é assustador imaginar resorts e hotéis sendo construídos em uma área tão frágil ambientalmente, quando estudos já mostram que em 30 anos uma parte considerável do delta pode ficar submersa.
Outro vetor de destruição é a pressão sobre os manguezais, derrubados para dar lugar a fazendas de camarão, uma face muito cruel do agronegócio no litoral do Piauí, Maranhão e Ceará. Mas, hoje, talvez a pressão mais preocupante seja a da instalação de energias renováveis, solar, eólica e de hidrogênio verde, feita de forma injusta. Os movimentos locais, coletivos e organizações de todo o litoral denunciam isso como uma “transação energética”: empreendimentos instalados sem escuta e sem participação comunitária, que acabam impactando a provisão de água, energia e até alimento das comunidades locais, tradicionais, pesqueiras, quilombolas e indígenas. Por isso, eu diria que o nosso ponto de atenção maior agora, e sobre o qual nossas redes de mulheres na região estão mobilizadas, é a instalação desses grandes empreendimentos de energia verde. Nós somos a favor da energia verde. Como ativistas climáticas, entendemos a urgência de cortar a dependência do óleo e do gás. Mas tudo precisa ser feito com justiça social. Caso contrário, estaremos apenas reproduzindo sistemas extrativos e continuando o processo de colonização que sempre existiu no Brasil.
M&M – Na sua perspectiva, qual é a importância do Sul Global na liderança climática mundial e como as vozes dessa região podem promover mudanças mais duradouras?
Flávia – O Sul Global é um conceito interessante, mas sempre acho desafiador unificar toda a diversidade da América Latina, África e Ásia em uma única ideia. Ainda assim, esse conceito é importante como um atalho para entendermos a justiça climática. O que significa promover justiça climática? Significa reconhecer que os países que mais causaram a mudança climática foram os do Norte Global, os que mais se beneficiaram da industrialização e emitiram mais carbono desde a Revolução Industrial. Já os países que mais sofrem os impactos são os do Sul Global, como o Brasil. A justiça climática parte desse entendimento de que precisa haver uma transferência de recursos do Norte para o Sul Global, para apoiar a adaptação, lidar com perdas e danos e equilibrar melhor esse jogo de forças. Há também uma dimensão de reparação histórica, até porque os impactos não terminam em fronteiras geográficas. O que acontece no Sul Global impacta diretamente o Norte Global.
Um exemplo é a migração. Hoje, pesquisas mostram que a grande migração climática do Sul para o Norte Global começou. Antes, as pessoas migravam dentro do próprio país, mas agora, muitas precisam atravessar fronteiras. Basta olhar os dados da fronteira dos Estados Unidos para ver que muitos migrantes vêm da América Central, de áreas semiáridas e em processo de desertificação, muito parecido com o que acontece hoje no Nordeste do Brasil. Sem conseguir plantar, se alimentar e gerar renda, agricultores e suas famílias acabam migrando para o Norte Global. Tudo isso mostra que a pauta do Sul Global é uma agenda global. Por isso é fundamental que, nos espaços de decisão, haja pessoas que contem as histórias do Sul Global, que estejam próximas dos problemas e melhor posicionadas para implementar soluções. As populações do Sul Global não são meros recipientes de fundos climáticos, elas têm profundo conhecimento do território, redes sociais que fortalecem a implementação das soluções e um pensamento crítico e sofisticado sobre o que é necessário para enfrentar a crise climática.
M&M – Qual é o papel estratégico das empresas brasileiras na construção e implementação da agenda climática nacional e global, especialmente no contexto da COP30?
Flávia – As empresas brasileiras têm um papel central de entender o desenvolvimento de lideranças não apenas como algo bom para a empresa, mas também para o planeta. É preciso que elas se vejam para além do limite do espaço físico e das áreas de atuação, como agentes centrais, junto com governos e sociedade civil, no enfrentamento da crise climática. Nos últimos anos, tem acontecido algo curioso: os dados mostram uma queda na confiança das pessoas nas políticas de governança socioambiental, o ESG, e também nas políticas de diversidade, equidade e inclusão, o DEI. A confiança nas empresas, nos líderes, nos CEOs, na mídia corporativa e até nos times de marketing caiu bastante.
Por isso, o que a gente precisa é que as companhias se sintam mais confiantes e preparadas para lidar com as incertezas. Para isso, é fundamental desenvolver lideranças que reconheçam a complexidade dos problemas e entendam que o imperativo do nosso tempo mudou. Se antes era “crescer e multiplicar”, ou seja, o crescimento a qualquer custo, hoje já passamos desse ponto: crescemos tanto que chegamos à autodestruição, à ameaça de extinção da nossa própria espécie. Nesse cenário, não faz mais sentido usar apenas o crescimento como métrica de impacto. As empresas que ainda não percebem isso já estão perdendo consumidores e a confiança deles. Porque, se eu não confio no líder da empresa e no time de marketing, eu também não confio no produto ou no serviço. Por isso, as companhias precisam olhar para esses dados com seriedade e se posicionar não apenas como líderes de seus projetos ou de seus negócios, mas como lideranças do seu tempo.