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Como empresas têm promovido inclusão da neurodiversidade

Entenda os programas de Itaú, SAP, EY e Leroy Merlin para incluir profissionais neurodivergentes no Brasil

i 8 de julho de 2025 - 16h35

A neurodiversidade é um termo relativamente novo. Foi cunhado pela pesquisadora australiana Judy Singer para explicar os diferentes funcionamentos nos modos de aprender, pensar e se comportar. “Ela propõe um olhar semelhante ao da biodiversidade: assim como há diversidade entre espécies, também existe uma diversidade entre os cérebros”, explica Rute Rodrigues, psicóloga e diretora de operações na Specialisterne Brasil, organização social de inclusão profissional para adultos autistas.

Segundo estimativa da Universidade de Stanford, de 15% a 20% da população mundial seria neurodivergente, o que inclui pessoas com autismo, TDAH, transtorno de ansiedade generalizada, superdotação, dislexia, transtorno de personalidade borderline, transtorno bipolar, discalculia, altas habilidades, dispraxia, entre outros. “Porém, algumas dessas diferenças estão mais próximas de um padrão e são chamadas de neurotípicas, enquanto outras estão mais fora, e aí entram os chamados neurodivergentes ou neuroatípicos”, continua a especialista.

No Brasil, 1,2% da população é autista, ou seja, aproximadamente 2,4 milhões de pessoas. “A pessoa neurodivergente processa informações, sensações e entende a convivência social de um jeito diferente do padrão que a sociedade considera comum”, explica Sarah Fernn, que após ser diagnosticada com TDAH e autismo criou a Stardust Zone, startup de soluções para inclusão e acessibilidade neurodivergente.

Sarah Fernn, CEO da Stardust Zone (Crédito: Divulgação)

Sarah Fernn, CEO da Stardust Zone (Crédito: Divulgação)

De acordo com a pesquisa “Radar da Inclusão 2024: Empregabilidade das Pessoas com Deficiência”, da Talento Incluir, Pacto Global, Instituto Locomotiva e IO Diversidade, 8 em cada 10 pessoas já se sentiram prejudicadas no mercado de trabalho por ser uma pessoa com deficiência ou neurodivergente. Embora para 76% o fato de ser PcD ou neurodivergente não impacte ou impacte positivamente na capacidade de executar o trabalho, para 60% isso impacta negativamente nas chances de ter um bom trabalho.

Obstáculos da inclusão

Os desafios já começam nas etapas de entrada no mercado de trabalho. Algumas características dos processos seletivos podem adicionar barreiras aos neurodivergentes, como a baixa previsibilidade de respostas, a exigência de experiências prévias e de habilidades de comunicação e flexibilidade. Para superar alguns destes entraves, as especialistas consultadas recomendam que as empresas revisem seus processos, adotem medidas inclusivas como cotas e desenvolvam programas especializados.

A Leroy Merlin, que tem uma iniciativa exclusiva para atração e retenção de talentos autistas, o Programa Diamante, já implementa letramento nos processos seletivos, para que sejam mais inclusivos para este grupo. “Questões como a expectativa de contato visual em entrevistas, linguagem corporal ou habilidades interpessoais são, muitas vezes, interpretadas de forma equivocada”, destaca Mauro Filgueiras, gerente de desenvolvimento responsável da Leroy Merlin.

Mauro Filgueiras, gerente de desenvolvimento responsável da Leroy Merlin (Crédito: Divulgação)

Mauro Filgueiras, gerente de desenvolvimento responsável da Leroy Merlin (Crédito: Divulgação)

Depois que este profissional passa pelo processo seletivo, ele ainda pode enfrentar desafios do próprio ambiente de trabalho, que costuma não ser adaptado às suas limitações sensoriais. “Ambientes com excesso de estímulos visuais e sonoros podem ser exaustivos para pessoas neurodivergentes. A inclusão, portanto, passa pela responsabilidade de oferecer alternativas de ambiente e ritmo de trabalho que respeitem diferentes necessidades cognitivas e sensoriais”, afirma Tatyana Montenegro, diretora de recursos humanos no Itaú Unibanco.

Além disso, o preconceito e o capacitismo também impactam diretamente a inclusão desses talentos, associando a neurodivergência à limitação ou baixa performance. “Aqui no Itaú, investimos em treinamentos anti-viés para lideranças e times de RH, garantindo que as avaliações de desempenho e os planos de desenvolvimento sejam baseados em evidências, não em suposições”, continua a diretora.

O que as lideranças e empresas precisam estar alertas, apontam as especialistas, é sobre a rigidez cognitiva que caracteriza muitos indivíduos neurodivergentes. Mudanças repentinas em rotinas e processos podem gerar atritos se não bem articulados.

Na verdade, o preconceito surge pela falta de conhecimentos. “Boa parte dos desafios vem do desconhecimento sobre a neurodivergência em questão. Cada neurodivergência tem critérios de diagnóstico ou identificação específicos. Por exemplo, uma pessoa superdotada pode ter desafios emocionais, mesmo que aprenda rápido e de forma autônoma”, explica Sarah. De acordo com a pesquisa “Neurodiversidade no Mercado de Trabalho”, realizada pela Consultoria Maya em parceria com Korú, Tismoo.me e Órbi Conecta, 86,4% dos entrevistados nunca participaram de treinamentos ou programas relacionados ao tema no ambiente corporativo.

Outro desafio, cada vez mais comum no ambiente corporativo e não exclusivo de pessoas neurodivergentes, é o cuidado com a saúde mental. “É comum haver momentos de ansiedade ou até de depressão, algo bastante frequente nesse grupo, embora eu veja isso aumentando de forma geral. Tenho recebido muitos casos de depressão, questões mentais e necessidade de afastamento”, aponta Eliane De Mitry, gerente de recursos humanos da SAP Brasil e responsável pelo programa SAP Autism at Work no país.

Potências da neurodiversidade

Do mesmo modo que existem desafios, existem os benefícios que esses profissionais trazem ao ambiente e às empresas. “A gente costuma observar algumas características, como uma atenção maior aos detalhes, pensamento fora da caixa, raciocínio lógico e uma honestidade muito marcante”, aponta a diretora da Specialisterne.

“Sua diversidade de pensamento gera criatividade e inovação, permitindo que a nossa empresa encontre soluções únicas para desafios complexos”, destaca Maithe Paris, líder em diversidade, equidade e inclusão e responsabilidade corporativa da EY para América Latina.

Maithe Paris, líder em diversidade, equidade e inclusão e responsabilidade corporativa da EY para América Latina (Crédito: Divulgação)

Maithe Paris, líder em diversidade, equidade e inclusão e responsabilidade corporativa da EY para América Latina (Crédito: Divulgação)

Um artigo da Deloitte destaca que organizações com times diversos têm 75% mais chances de ver suas ideias se tornarem produtos, 87% mais chances de tomar melhores decisões e tendem a ter maiores receitas derivadas da inovação. O artigo também aponta que profissionais neurodivergentes têm maior disposição para compartilhar ideias diferentes, mesmo que não sejam imediatamente apoiadas, o que ajuda a combater o pensamento de grupo.

Outros benefícios destacados pelo artigo são resiliência, agilidade, resolução de problemas, foco profundo e expansão da perspectiva do cliente. Um exemplo, apontado pelo texto, é Ingvar Kamprad, fundador da Ikea, cuja dislexia o levou a nomear os produtos com nomes suecos memoráveis em vez de códigos, o que se tornou uma característica popular da marca.

O foco profundo, ou hiperfoco, também é outra habilidade mencionada. “É muito comum pegarem uma atividade e não quererem parar até terminar. Acho isso uma habilidade importante, mas que também precisa de cuidado, porque eles precisam ter horário definido: de entrada, de saída, de descanso”, aponta a gerente da SAP.

Empresas que promovem programas dedicados à profissionais neurodivergentes também apresentam resultados positivos em relação à retenção de talentos, pertencimento, engajamento e reputação. “Times diversos demonstram um aumento na produtividade e um maior senso de pertencimento, o que resulta em melhores entregas e melhora nas taxas de retenção e permanência de talentos”, complementa a líder da EY.

Ter profissionais diversos é o ponto de virada para uma mudança significativa na cultura das empresas. “A presença de colaboradores neurodivergentes provoca uma transformação cultural positiva, tornando o ambiente mais empático, diverso e colaborativo. Isso estimula o letramento das equipes, promove relações mais respeitosas e impulsiona o senso de pertencimento, valores que se traduzem em times mais engajados e empresas mais humanas”, adiciona Mauro, gerente da Leroy Merlin.

Os diferentes modos de processar informações, aprender e resolver problemas também podem resultar em ganhos tangíveis para as empresas. “Profissionais no espectro autista, por exemplo, apresentam uma acuidade acima da média, sendo capazes de identificar inconsistências e padrões em grandes volumes de dados, o que é extremamente valioso em atividades de qualidade de software, auditorias e análise de compliance”, exemplifica a diretora do Itaú.

Neurodiversidade nas empresas

Para superar os desafios e potencializar os benefícios, as especialistas consultados citam uma gama de ações possíveis de serem conduzidas pelas empresas. A começar pelo letramento sobre a neurodiversidade, para combater o desconhecimento e o preconceito.

“Criar espaços onde lideranças e colaboradores não só aprendam sobre neurodiversidade, mas possam dialogar em um ambiente seguro. Muitas vezes, há líderes e colaboradores neurodivergentes que não se sentem à vontade para falar sobre seus desafios e oportunidades”, destaca Sarah Fernn.

Empresas como o Itaú destacam a importância do letramento para os líderes. “É preciso formar líderes capazes de reconhecer e valorizar diferentes estilos de comunicação, ritmo de trabalho e interação social. Por isso, treinamentos em neurodiversidade, dinâmicas de sensibilização e exercícios de simulação devem fazer parte dos planos de desenvolvimento dos líderes”, aponta Tatyane Montenegro.

Tatyana Montenegro, diretora de Recursos Humanos no Itaú Unibanco (Crédito: Divulgação)

Tatyana Montenegro, diretora de Recursos Humanos no Itaú Unibanco (Crédito: Divulgação)

Isso inclui o letramento sobre processos seletivos inclusivos para essa população. “Por exemplo, no caso do autismo, é comum a literalidade no entendimento das coisas. Por isso, ter instruções claras no processo seletivo, como repetir uma pergunta na entrevista, pode parecer simples, mas já faz muita diferença para a inclusão”, adiciona a CEO da Stardust Zone.

A diretora da Specialisterne aponta que a acessibilidade para este grupo não é somente física, mas principalmente comunicacional e metodológica. “Os gestores costumam relatar as adaptações que fazem para incluir profissionais autistas, como adotar uma comunicação mais objetiva e clara. A equipe passa a evitar ambiguidades, trazer dados mais concretos, prazos mais definidos e todo mundo se beneficia”, diz.

O Itaú e a EY já implementam diferentes formas de processos seletivos. “Substituir parte dos testes por simulações práticas, ou mesmo contar com um mentor treinado durante o processo seletivo, ajuda a revelar competências que, muitas vezes, passariam despercebidas”, aponta a diretora do Itaú. Como resultado, o banco recentemente alcançou o marco de 350 profissionais autistas contratados.

Maithe Paris, da EY, complementa: “Implementamos processos de seleção mais práticos, como hackathons, onde os candidatos podem demonstrar suas habilidades em um ambiente menos estressante. Ainda nessa temática, também participamos como patrocinadores do Autismo Tech nos últimos 4 anos”.

Mentorias e capacitação

A capacitação e desenvolvimento profissional estão inclusos em muitos programas com foco na neurodiversidade. A Stardust, por exemplo, oferece cursos a sua comunidade em habilidades técnicas, socioemocionais e também simulações para o mercado de trabalho, para que estes profissionais entendam os códigos sociais, compromissos e comportamentos que muitas vezes estão implícitos e lhes passam despercebidos.

De forma complementar, a mentoria individual é apontada como uma ação importante que pode endereçar desafios pessoais. A iniciativa da SAP contempla a designação de um “coach”, ou mentor, com apoio da Specialisterne, para cada profissional neurodiverso. “Na prática, é um processo em que se entende a necessidade daquela pessoa, conhece seu perfil, identifica-se o que precisa ser adaptado, e então começa um trabalho com ela, com o gestor e com o time. Esse programa costuma durar cerca de seis meses, podendo ser estendido conforme a necessidade da pessoa ou por recomendação da especialista”, afirma Eliane.

A iniciativa também designa um colega de equipe para acompanhar o profissional. “Esses mentores são voluntários. Isso faz muita diferença, porque a pessoa passa a ter mais um apoio dentro da empresa. Quando alguém se interessa e pergunta como pode ajudar no programa, sempre ofereço a possibilidade de ser mentor de um colega autista”, aponta a gerente.

A EY também implementa mecanismos de apoio na jornada profissional. “Temos um programa, o Atypical, que visa não apenas à contratação, mas à inclusão efetiva. Por meio dele, realizamos o acompanhamento mensal da carreira dos nossos profissionais neurodiversos e de suas lideranças imediatas, de forma que o processo de acomodações e adaptações seja ágil e eficaz”, aponta a líder.

O programa da EY começou em 2021 com 4 profissionais, e hoje conta com 42. ”No último ano, tivemos o dobro de profissionais que receberam avaliação de performance diferenciada, ou seja, alta performance, em relação ao ano anterior, o que representa progresso e demonstra que nosso programa está no caminho certo em termos de produtividade e desenvolvimento contínuo”, avalia Maithe.

Cultura de feedback e adaptação

Por isso, ter espaços de acolhimento e diálogo, como grupos de afinidade ou mentorias, são maneiras de fomentar uma cultura de feedback, muito importante para este processo de inclusão. “São profissionais muito abertos a feedbacks, e a gente sempre incentiva as lideranças a darem retornos contínuos. Por conta dos impactos na cognição social, às vezes é difícil para eles entenderem se estão dentro do esperado ou não. Então, sinalizar isso é fundamental”, destaca a especialista da Specialisterne.

Por vezes, a acessibilidade de pessoas neurodivergentes passa pela implementação de pequenas ações. A CEO da Stardust Zone indica que os times comecem com pequenas modificações, protótipos ou MVPs, como costumam chamar, para coletar feedback e, depois, implementar como política. “Salas de foco com iluminação ajustável e isolamento acústico para tarefas que demandam concentração intensa, assim como a disponibilização de fones com redução de ruído e ferramentas de leitura automatizada de textos, são exemplos de soluções simples, mas que fazem uma diferença imensa no bem-estar e na performance desses profissionais”, exemplifica a diretora de RH do Itaú.

Na SAP, a adaptação também perpassa pela flexibilidade de horários e espaços para o trabalho. Algumas delas incluem o modelo de home office, salas sensoriais de descompressão para o trabalho presencial, ou, ainda, flexibilização de horário em casos de pessoas que tomam medicações e precisam começar o dia mais tarde. Todas as acomodações são discutidas caso a caso, com orientação médica.

O programa Autism At Work da SAP começou em 2013 como uma iniciativa da Índia, que logo expandiu para 16 países, incluindo o Brasil. Por aqui, a iniciativa começou em 2015 e hoje conta com 70 colaboradores em áreas administrativas e técnicas como desenvolvimento de soluções, suporte às áreas de vendas e de soluções. Os três escritórios, em São Paulo, Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, já têm vagas afirmativas para autistas. Por serem um dos pioneiros na inclusão desse público, a organização firmou um compromisso global, o Autism Inclusion Pledge, de ajudar outras organizações a criarem suas próprias iniciativas para pessoas autistas.

A Leroy Merlin, por sua vez, criou o programa Diamante em 2023 e, desde então, já impactou mais de 750 profissionais. “Um dos marcos foi a criação do grupo Neurodiversidade Leroy Merlin Brasil, voltado principalmente para colaboradores que são pais e mães de crianças autistas, criando um espaço seguro para trocas, acolhimento e construção coletiva de conhecimento”, destaca Mauro.

O programa começou com um projeto piloto na área de tecnologia, com apoio da Specialisterne. O sucesso permitiu a expansão para outras áreas, com novos processos seletivos em andamento e com o objetivo de chegar até às lojas.