Do gênero à carreira: as transições de Luh Maza
A roteirista, diretora e atriz passou por transformações e desafios até chegar às produções da Globoplay, Netflix, HBO e às campanhas publicitárias
Do gênero à carreira: as transições de Luh Maza
BuscarA roteirista, diretora e atriz passou por transformações e desafios até chegar às produções da Globoplay, Netflix, HBO e às campanhas publicitárias
Michelle Borborema
5 de fevereiro de 2024 - 16h54
Carioca e suburbana. Essas são as primeiras características que Luh Maza atribui a si ao pensar sobre sua trajetória profissional. Mas, depois de alguns minutos de conversa, sua origem se revela como apenas um dos traços de uma personalidade movida a arte, resistência e transições, combinação que faz dela uma diretora e roteirista frequente em produções da Globoplay, Netflix, HBO e de campanhas publicitárias.
“Sou das transições. Transicionei de gênero, de linguagem artística [do teatro para o audiovisual], do roteiro para a direção. Me interessam esses movimentos e essa fluidez. Mas, nesse momento, estou bastante focada no meu trabalho como diretora e roteirista”, diz.
De fato, Luh vem de um berço cultural cheio de inspiração. O universo suburbano do Rio de Janeiro — no caso dela, do bairro de Olaria — já rendeu muitas narrativas, peças e filmes, mas foi em São Paulo, onde ela mora há mais de 15 anos, que suas transições e sua arte foram acolhidas.
“Se no Rio importava muito de quem você era filho, de que bairro era, em São Paulo todo mundo é de outro lugar, muita gente é migrante. Então o que vale é o que você tem a dizer, e o que eu tinha [a dizer] interessava às pessoas. Isso foi muito importante para mim, porque cheguei com uma mão na frente e outra atrás. Mas logo comecei a trabalhar no teatro e fiz muitas coisas”, reflete.
Luh foi para São Paulo com o dinheiro da venda de um computador. Lá, cresceu na dramaturgia e, após uma jornada de aprendizados e reconhecimento, migrou para o audiovisual. O percurso foi longo, cheio de desafios, conquistas e uma transição de gênero no meio do caminho, momento em que o teatro, mais uma vez, exerceu um papel fundamental na sua vida.
Os movimentos feitos por ela parecem ter dado certo. Conhecida por ser uma das roteiristas da série “Sessão de Terapia”, obra que fez sua voz ecoar, Luh acaba de finalizar a adaptação do livro “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, para o formato de série de TV. O projeto será dirigido por Heitor Dhalia e terá produção da Paranoid. Como diretora, ela estreia em 2024 a série “Da Ponte Pra Lá”, no HBO Max, e o filme “Nada Somos (Insubmissas)”.
Luh também coleciona pioneirismos: além de ter sido a primeira roteirista trans da televisão brasileira, foi a primeira diretora trans do Theatro Municipal de São Paulo e a primeira jurada trans do Prêmio Shell de Teatro. Para ela, no entanto, os feitos estão longe de serem motivo de muita comemoração.
“A gente bate a taça de cristal para fazer o brinde e celebrar, mas o barulho dela não pode ser mais alto do que o choro de dor das ‘minhas’, entende? Então minhas comemorações são sempre agridoces. Se estou nessa vulnerabilidade, o que dirão outros profissionais trans e pretos? As pessoas adoram nos chamar de rainhas, maravilhosas, lindas e deusas, mas não podem nos usar desta maneira para acalmar parte de um público que, cada vez mais, sente o desejo de ser representado.”
Quando era pequena, Luh lembra que tinha o privilégio de ir ao teatro com frequência. Toda semana, a mãe a levava para um espetáculo. Aos poucos, depois de algumas idas à coxia para ver um amigo da família se arrumar, não teve dúvidas sobre sua paixão.
“Ficava muito fascinada e, apesar de estar em uma localização geográfica que impedia as pessoas de naturalizarem a profissão de artista, comecei a fazer teatro aos 12 anos, com apoio da minha mãe, ainda que com todas as inseguranças. A dramaturgia se tornou minha pátria, meu idioma, porque cresci ali.”
Apenas quatro anos depois, Luh já era vista como uma dramaturga talentosa na cena carioca. Aos 16, estreou sua primeira peça, ainda no Rio de Janeiro, e a escolha artística a fez integrar o movimento de novos autores da região, chamado “Nova Dramaturgia Carioca”, que, pela necessidade, logo se tornou um grupo de escritores que também dirigiam.
“Os diretores renomados não se interessavam por dramaturgia contemporânea, então não havia outra saída se nós mesmos não dirigíssemos nossas próprias histórias”, lembra.
No processo, Luh se encantou pela direção e diminuiu sua entrada em cena como atriz para se dedicar a escrever e dirigir. Em 2007, em um cenário político e econômico delicado no Rio de Janeiro, com o teatro esvaziado por ausência de apoio público, ela se mudou para São Paulo, onde foi acolhida pelo grupo Satyros e pelo Centro Cultural São Paulo.
Lá, ela se encontrou e cresceu. Em 2015, foi convidada para dirigir uma de suas peças em Portugal, “Carne Viva”, sobre o feminino, usada até hoje em provas de universidades pelo País, além de ser considerada um monólogo hit para as atrizes mais novas. O texto está publicado em livros no Brasil, Europa e África.
“Essa internacionalização foi um passo definitivo para a minha carreira”, lembra. De volta ao Brasil, ela produziu e dirigiu a peça “Kiwi”, em 2016, atingindo um reconhecimento nacional importante no meio, o que a levou a pensar sobre sua transição de gênero.
“Trabalho desde os 12 anos, e não apenas com teatro, vale dizer. Tive que fazer muitas outras coisas, entre aulas de informática e espanhol. Vendi coisas de catálogo. Com o ‘Carne Viva’ e o ‘Kiwi’, senti que finalmente fui vista como artista. E aí foi a hora de me encarar. Queria muito aquilo, mas ainda não estava feliz e satisfeita, pois não era eu mesma. Foi o momento de colocar para o mundo que eu era uma mulher. De reivindicar meu lugar, fazer minha transição.”
O teatro foi o casulo de Luh para a arte e a vida. Foi onde conheceu outras mulheres trans, como Sofia Riccardi e Marcia Dailyn. Foram elas que a fizeram perceber que, de fato, era uma mulher trans, embora já fizesse cross-dressing desde os 18 anos. A partir daí, foram muitos estudos sobre transição, reflexões e coincidências que a deixaram mais à vontade durante o processo.
Por exemplo: na época em que começou a considerar sua transição, era o momento de florescimento de artistas trans e pretas como Liniker, Linn da Quebrada e Raquel Virgínia. “Elas eram de uma geração mais nova que a minha. Pensei que era meu bonde, que gostaria de ter tido oportunidade de vê-las há 10 anos. Senti que era a hora, era meu chamado. E eu fui.”
Luh adotou então um visual diferente. Causou estranhamento em uns, mas sensação de pertencimento e identificação em outros. Na transição, muitos acharam que era piada, graça, loucura. E, nesse período, o teatro foi, de novo, crucial em sua vida.
“O Rodolfo Garcia Vasquez, do grupo Satyros, me chamou para participar de um projeto deles sobre a questão trans. Fiquei interessada, mas não queria atuar. Porém, ele disse que queria que eu atuasse, e senti essa convocação do meu corpo ao teatro. Foi a melhor coisa que podia ter acontecido, porque o teatro cuidou de mim nesse processo.”
A dramaturgia também foi onde ela se preparou, de maneira orgânica, para o audiovisual. Ela fez seu primeiro roteiro para a publicidade no projeto “35”, de 2019, criação da Y&R Brasil para o portal de notícias LGBTQIA+ ATHOSGLS, que ressaltava a expectativa de vida de apenas 35 anos das pessoas transgêneros no Brasil, com interpretação da cantora Liniker da música “Forever Young”.
Em seguida, veio a série “Sessão de Terapia”. Luh foi chamada inicialmente para desenvolver uma personagem trans, mas a equipe acreditou que ela poderia criar qualquer história e a chamou para escrever outros enredos. Foi aí que ela fez a transição do teatro para a televisão, tornando-se a primeira roteirista trans da TV brasileira.
A série projetou o talento da Luh no audiovisual e, logo na sequência, apareceram várias oportunidades para ela e para outras pessoas trans da indústria. Mas nem tudo são flores – muito pelo contrário.
Para Luh, a batalha de inclusão das pessoas trans no audiovisual ainda está começando. O movimento, avalia, deu uma arrefecida considerável nos últimos tempos. Segundo a diretora, houve um boom de interesse pelas pautas trans e negras no mercado da publicidade na pandemia, mas, nos últimos anos, além do mês da visibilidade, não há mais ações.
“Nossas conquistas têm bastidores muito pesados, que são atravessados pelo preconceito transfóbico. Muitas vezes nem podemos expor tudo o que vivemos, com receio de perder trabalhos. Escrevo e dirijo sobre tudo, mas ainda é uma luta para o mercado reconhecer que vamos além da temática trans. Precisamos nos movimentar muito mais do que qualquer profissional branca ou homem cisgênero para sermos validados.”
Segundo Luh, o problema é de toda a indústria, seja de publicidade ou televisão, e todos devem rever seus papeis neste cenário. “O departamento de D&I tem sido substituído pelo de ESG, mas o ESG não dá conta. Me pergunto se o mercado acha que já foi suficiente, porque não foi. As vidas desses profissionais não foram transformadas. Não chegamos nem perto de um cenário equitativo de pessoas pretas na publicidade, imagina de profissionais trans?”, reflete.
Para ela, o contexto da televisão tem algumas peculiaridades, pois não há uma relação direta entre cliente e marca. Por isso, a mudança em grandes produtoras e empresas de streaming está sobretudo nos executivos e acionistas, e no entendimento de que o investimento na inclusão é valioso.
“Sou uma figura estratégica, o nome famoso quando o tema é trans. Mas ainda não fui convidada para dirigir um comercial do novo carro de luxo. Não podem nos usar como rainhas se não temos poder de fala, poder criativo, e, principalmente, poder econômico. Porque são esses poderes que transformam a realidade.”
Luh, que mira a posição de showrunner, mais comum na indústria americana, volta à sua identidade para lembrar que é a origem suburbana que pode transformar criativamente o mercado. “As cineastas pretas e pobres, que vieram da favela, têm um frescor, embora sejam facilmente descartadas. São elas que podem mudar a indústria. E digo isso não por militância, mas porque seria uma falta de responsabilidade humana tremenda falar apenas das minhas conquistas. Quero ser artista, mas também preciso valorizar a pauta ‘das minhas’ enquanto não houver equidade para as pessoas trans, pretas e pobres.”
Compartilhe
Veja também
Como as mulheres estão moldando o mercado dos games
Lideranças femininas de diferentes players falam sobre suas trajetórias profissionais na indústria
Como Rita Lobo fez do Panelinha um negócio multiplataforma
Prestes a completar 25 anos à frente do projeto e com nova ação no TikTok, a chef, autora e empresária revela os desafios de levar comida de verdade dos livros de receitas para outros espaços