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Opinião

Novas tecnologias, antigas estruturas

Entre discursos midiáticos, silenciamento e muita resistência, é sempre oportunidade de enfrentamento à violência contra as mulheres, seja da esfera em que estivermos


6 de fevereiro de 2024 - 6h31

A artista venezuelana Julieta Inés Hernández Martínez, Miss Jujuba, que pedalava pelo Brasil desde 2019 o percurso de retorno à Venezuela (Crédito: Reprodução/Instagram)

“Migrante nômade, bonequeira, palhaça e viajante de bicicleta”. Assim, a artista venezuelana Julieta Inés Hernández Martínez se descrevia nas redes. Pedalando pelo Brasil desde 2019, Miss Jujuba fazia o percurso de retorno à Venezuela, seu destino final era o colo da mãe.

No último dia 23 de dezembro, enquanto dormia, Julieta foi roubada, abusada sexualmente, teve o corpo queimado e enterrado em cova rasa.

“… Julieta sempre rejeitou o medo, ela era uma ariana poderosa, nunca teve medo, pelo contrário, rebelava-se com o poder de uma tempestade. Hoje, devemos contar essa parte de sua história […] sua trágica morte é uma história de proeza inimaginável”, escreveu sua irmã Sophia Hernández em uma carta aberta.

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Sempre tive orgulho de ser corajosa. Na primeira vez em que viajei sozinha, eu tinha 6 anos. Minha mãe, alguém que sempre lidou com a vida de forma prática, ao se ver sem rede de apoio ou recursos financeiros, não teve dúvidas: me explicou o caminho e combinamos que a partir dali eu faria o percurso da escola sozinha.

Duas coisas eu prometi antes de partir em direção à ‘independência’: primeiro, viajar no banco da frente ao lado do motorista. Segundo, ficar alerta com os homens. Caso puxasse conversa ou tentasse me tocar, eu deveria achar uma mulher adulta e pedir ajuda com a seguinte frase: “senhora, posso viajar ao seu lado? Estou com medo de um homem.” Não apontar o homem. Falar baixinho. Uma mulher adulta entenderia imediatamente o pedido de socorro de uma menina. Essa era a nossa aposta.

Em uma das viagen,s a teoria se fez prática. Um homem alto e magro vestido com uma camiseta de time se sentou ao meu lado e tentou colocar a mão entre as minhas pernas. Já preparada, agi rapidamente. Pedi licença, me levantei e disse minha frase ensaiada para a moça mais velha que encontrei. Me lembro como se fosse hoje do rosto do homem, bonito. Lembro também do rosto dela, apavorada. Sem saber o que fazer, me colocou no colo, mas minha mãe também havia sido clara sobre isso: “é proibido sentar no colo de estranhos”, então agradeci e pedi para seguir viagem ao seu lado.

Feliz por ter seguido todas as ordens, cheguei empolgada para contar o corrido à minha mãe, certa da premiação. Mas para minha surpresa ela caiu no choro ao me ouvir. Um pranto que me deixou assustada e, por tempos, culpada. O que eu havia feito de errado se segui todas as regras?

Segundo a cartilha “Vamos Falar Sobre: Assédio Sexual”, produzida pela organização Think Olga em parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, tocar as partes íntimas de alguém sem consentimento também pode ser enquadrado como estupro, dentre outros comportamentos (conforme Art. 213 do Código Penal, constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso). Na pesquisa realizada em 2019 pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, 97% de brasileiras de todas as regiões do País afirmaram ter sido vítimas de assédio em meios de transporte, e 71% conhecem alguma mulher que já sofreu assédio em espaço público.

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Tinha orgulho de ser corajosa.

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Passada dos 40 anos, infelizmente eu te (e me) decepcionaria, mãe, me tornei uma mulher de muitos medos. Os de ontem, os de hoje e do amanhã. Me lembro ainda da recente promessa onde debate público vindo das redes traria luz às demandas sociais urgentes, onde a tecnologia seria ferramenta emancipatória das condições humanas. Teríamos voz, seríamos protegidas. Mas algo deu errado, pois Julieta era uma mulher empoderada, tinha sua rede de apoio digital, milhares de seguidores e não abriu mão de ter um olhar empático para mundo. O que ela fez de errado se seguiu todas as regras?

Se por um lado nunca processamos dados com tamanha velocidade e temos a sensação de que o futuro já está entre nós, por outro, parece não haver tecnologia que proteja o corpo feminino numa sociedade que se estrutura no patriarcado. Está exposta a jovem de Campinas, que em local público, iluminado e amplamente filmado foi assassinada a tiros pelo ex-companheiro. Estão desnudas em praça pública virtual, em falsos nudes criados por meio de inteligência artificial, estudantes de colégio renomado. Nem mesmo bilhões de pessoas conectadas em rede são capazes de impedir que a violência sexual contra mulheres seja usada como arma de guerra e transformada em conteúdo repugnante em todos os conflitos armados ao redor do mundo.

E por que inauguro esse espaço falando sobre violência contra mulheres? Nesse exato momento, muitos de nós, líderes na indústria criativa, agências, veículos e clientes, estamos trabalhando em nossas campanhas de março, quando se comemora o Dia Internacional de luta das Mulheres. Se pensamos no sujeito consumidor, é necessário compreender, nesse contexto, sua dimensão política em uma leitura crítica ajustada que nem nos apavore frente ao desafio, mas também não nos afaste dos debates essenciais que envelopam a data.

E entre discursos midiáticos, silenciamento e muita resistência, é sempre oportunidade de enfrentamento à violência contra as mulheres, seja da esfera em que estivermos, com as possibilidades que temos. E são muitas. Se esse é um problema de saúde pública, segurança e educação, nesse último somos lideranças fundamentais e, talvez, nunca tão convocados a agir.

“Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.” (Simone de Beauvoir) 

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