O ano em que aprendi a ser duas (sem deixar de ser uma)
Conciliar maternidade, carreira e saúde mental é um desafio invisível que ainda pesa desproporcionalmente sobre as mulheres
O ano em que aprendi a ser duas (sem deixar de ser uma)
BuscarConciliar maternidade, carreira e saúde mental é um desafio invisível que ainda pesa desproporcionalmente sobre as mulheres
8 de maio de 2025 - 8h51
(Crédito: Shutterstock)
Há pouco mais de um ano, eu era uma. Uma profissional, uma mulher, uma pessoa com fronteiras claras entre o que era trabalho, o que era vida e o que era eu. Então vieram os filhos, meus dois meninos, gêmeos, e a matemática da existência ficou mais complicada. De repente, era preciso ser duas, três, dez — me multiplicar em versões que nunca imaginei. A executiva que entrega projetos ambiciosos. A mãe que decifra choros em três níveis diferentes. A mulher que tenta, em algum lugar no meio do caminho, e lembra, em algum momento, de autocuidado mais de duas vezes por semana.
O primeiro choque veio quando percebi que voltar ao trabalho não seria sobre retomar, mas sobre reinventar. No mercado das agências e dos games, onde a inovação é moeda corrente, eu mesma me tornei um produto em beta permanente — cheio de bugs a resolver, atualizações inesperadas e aquele loading infinito das noites mal dormidas. Havia dias em que minha maior vitória era não ter usado a blusa do avesso. Outros em que, mesmo exausta, conseguia apresentar uma estratégia brilhante entre uma mamadeira e outra. Aos poucos fui entendendo: não se trata de dividir, mas de expandir.
A sociedade nos vende a ideia de que é possível ter tudo, desde que você se esforce o suficiente. Mas ninguém conta que esse “tudo” muitas vezes vem aos pedaços — um pouco de carreira aqui, um tanto de maternidade ali, e os pedacinhos de você mesma espalhados nos intervalos. Quantas vezes me peguei pensando: será que ainda sou a mesma profissional? Será que essa versão fragmentada de mim ainda consegue impactar, liderar, criar? A resposta, descobri, está nas entrelinhas do cansaço.
Mas não é só uma questão pessoal. O que vivo no cotidiano é um reflexo de um problema estrutural, e os números revelam o quanto essa realidade é coletiva. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, metade das mulheres perde o emprego nos dois anos seguintes à licença-maternidade, não por falta de competência, mas porque o sistema ainda espera que sejamos as mesmas profissionais de antes, só que agora com superpoderes invisíveis.
A pesquisa “Sem Parar: A vida das mulheres com tripla jornada na pandemia”, da Think Olga com a QuestionMark, revela que 74% de nós vivemos em estado permanente de exaustão, um dado que persiste teimosamente mesmo após a pandemia, como se cansaço fosse parte inevitável do contrato de maternidade. No mercado de games, onde as mulheres já são quase metade dos jogadores mas minoria nas lideranças, o desafio é duplo: provar que pertencemos a esse espaço e que ele precisa se adaptar para nos receber por inteiro.
Mas se os números mostram um sistema que ainda nos subestima, a realidade nos prova algo diferente: é justo no olho do furacão que descobrimos forças que nem sabíamos ter. Descobri que minha criatividade se tornou mais aguçada — quando você tem 20 minutos para pensar, aprende a pensar melhor. Minha capacidade de priorizar virou superpotência — nada como um bebê com febre para ensinar o que realmente importa. Minha liderança ganhou novas camadas — hoje entendo que times fortes se constroem com flexibilidade, não com rigidez.
Para todas as mulheres que se veem nesse espelho embaçado de cansaço e culpa, deixo um segredo que estou aprendendo: não existe volta ao “normal”, porque o normal nunca nos serviu. Estamos criando um novo padrão a cada dia — um que inclui reuniões importantes interrompidas por risadas infantis, e a coragem de dizer “hoje não dou conta” sem medo de julgamento.
Se me perguntarem o que espero do próximo ano, a resposta é simples: continuar. Não perfeita, não impecável, mas presente. Porque resistir já é revolucionário. E no fim das contas, é nessa intersecção bagunçada entre carreira e maternidade que estou descobrindo minha versão mais autêntica — mesmo quando ela vem com olheiras e uma dose generosa de café.
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